
Pedro Castelo Branco
Advogado
Mestre em Direito Forense pela Universidade Nova de Lisboa (2024)
Licenciado em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (2022)
O Direito Processual Penal só se legitima enquanto concretizar e respeitar a Constituição. O artigo 32.º, n.º 1, estabelece que o “processo criminal assegura todas as garantias de defesa”. Esta norma confronta-se, porém, com uma questão simples mas de resposta complexa: o que sucede – ou o que deveria suceder – quando um arguido, ainda que imputável no momento da prática do facto, vem, supervenientemente, a padecer de uma anomalia psíquica que o impossibilita de exercer, de forma pessoal, os seus direitos de defesa?
O Código de Processo Penal é omisso quanto à questão. A jurisprudência, chamada a suprir tal lacuna, tem seguido soluções diversas: ora permite a continuação do processo como se o arguido fosse plenamente capaz, remetendo o problema para a fase de execução de eventual pena; ora admite a suspensão do procedimento até à recuperação do arguido (ainda que tal solução se revele ineficaz quando a recuperação é impossível); ora, ainda, aceita que o direito de defesa seja exercido, de facto, por outrem, como o defensor ou o representante legal. Esta dissonância de entendimentos gera incerteza e insegurança jurídicas, conduzindo, não raras vezes, a decisões contrárias à Constituição.
Impõe-se, por isso, refletir e definir o estatuto do arguido (incapaz) enquanto sujeito processual. Não deveria haver dúvidas: o direito de defesa é, desde a sua génese e em toda a extensão, pessoalíssimo – representa uma garantia constitucional e é expressão elementar do princípio da dignidade da pessoa humana. Julgar aquele que não compreende os factos de que é acusado, que não consegue comunicar com o defensor, que não consegue decidir se presta declarações, ou se opta pelo silêncio, é negar o núcleo essencial dessas garantias e obstar à realização de um processo justo e equitativo. Tal prática viola a Constituição da República Portuguesa e a Convenção Europeia dos Direitos Humanos.
Para bem entender o tema, importa distinguir inimputabilidade e incapacidade. A primeira diz respeito, exclusivamente, ao momento da prática do facto; já a segunda é relativa ao momento da intervenção do arguido no processo. A (in)imputabilidade é uma questão de direito material (culpa), enquanto que a (in)capacidade é uma questão de natureza processual, ou seja, saber se o arguido consegue exercer, de forma inteligível, o seu direito de defesa. São, pois, conceitos distintos, que não podem ser confundidos.
Para a declaração de incapacidade judiciária não basta, em nossa opinião, a mera verificação de uma anomalia psíquica. Exige-se, antes, a demonstração inequívoca de que tal anomalia impossibilita, de modo efetivo, o exercício do direito de defesa. Assim, à ciência médica caberá atestar tal impossibilidade (à semelhança do que ocorre com a inimputabilidade); ao Direito, caberá retirar as consequências materiais e processuais.
Consequentemente, defendemos que nos casos em que a incapacidade judiciária seja declarada, releva apurar se a mesma é temporária ou definitiva: a primeira deverá implicar a suspensão do processo até à recuperação do estado de capacidade do arguido; a segunda deverá conduzir à extinção do procedimento criminal.
Cada uma das consequências propostas assenta em fundamentos próprios e reclama um regime processual específico. Não ficam olvidadas matérias relevantes, como a possibilidade de prática de atos urgentes, o regime da prescrição ou o controlo periódico da situação clínica do arguido, entre outros aspetos concretos.
O direito comparado demonstra que este problema é resolúvel: ordenamentos como o alemão, o espanhol e, com particular relevo, o italiano, reconhecem autonomamente a incapacidade judiciária como instituto, e regulam-na de modo claro e conforme aos princípios constitucionais.
Por fim, consideramos que nos casos em que o arguido processualmente incapaz seja, simultaneamente, perigoso, a solução passará, de igual modo, pela suspensão ou extinção do processo, sem prejuízo da aplicação dos mecanismos previstos na Lei de Saúde Mental (Lei n.º 35/2023, de 21 de julho). Já quanto ao inimputável, incapaz e perigoso, impõe-se repensar o lugar – e o futuro – das medidas de segurança como reação criminal.
Em suma, a ausência de um regime jurídico que tutele o arguido processualmente incapaz tem conduzido a soluções casuísticas e, muitas vezes, incompatíveis com os princípios vertidos na Constituição. Os concretos termos da regulação devem ser objeto de ampla discussão, mas sobre um ponto não deve subsistir dúvida: é urgente uma intervenção legislativa que tutele o arguido portador de anomalia psíquica que se encontre impossibilitado de exercer plenamente os seus direitos de defesa.
É precisamente na análise destas questões que se centra a obra “A (In)capacidade Judiciária do Arguido e as Garantias de Defesa em Processo Penal”, em breve publicada. Embora propondo soluções, o seu propósito é o de recolocar o arguido no centro do processo penal, reafirmando-o como sujeito, respeitando os mandamentos constitucionais.
