David Falcão

 Professor Coordenador com Agregação do Instituto Politécnico de Castelo Branco


Ao abrigo do princípio da autonomia privada, previsto no artigo 405.º do Código Civil (CC), enraizou-se no mundo laboral a prática do trabalhador remitir créditos laborais, via “acordo” com o empregador. Tal vicissitude fundava-se no disposto no artigo 863.º do CC. Ora, não raras vezes, e aquando da cessação do contrato de trabalho, principalmente via acordo revogatório, o empregador “extorquia” ao trabalhador uma declaração de vontade que fosse no sentido de abdicar de um conjunto considerável (ou da totalidade) de créditos laborais. Tal comportamento declarativo do trabalhador resultava, por maioria de razão, de necessidade[1], de parcos conhecimentos técnico-jurídicos ou insuficientes elementos informativos e, de certa forma, pese embora a iminente cessação do vínculo, do “fantasma” da subordinação jurídica. A remissão abdicativa constante de documento escrito impedia, por sua vez, o trabalhador de vir, em fase posterior, reclamar tais créditos judicialmente[2].

A Lei n.º 13/2023, de 3 de abril, que materializou a Agenda do Trabalho Digno, alterou substancialmente o Código do Trabalho (CT). Uma das medidas inovadoras e que mereceu o nosso aplauso, traduziu-se na proibição de remição abdicativa, plasmada no artigo 337.º, n.º 3 do CT. Retirou-se, pois, da esfera das partes, a possibilidade de celebração de tais “acordos”[3], contrariando-se as referidas práticas, exceto em sede de transação judicial, mediante controlo jurisdicional. Tal controlo jurisdicional, em princípio na fase de tentativa de conciliação, concorrendo com o facto de o trabalhador se encontrar assistido por advogado, revelou-se fundamental, uma vez que reequilibrou os pesos da balança. Portanto, o eventual acordo que conduza a remissão abdicativa (total ou parcial) resulta de transação judicial e pressupõe-se justo e equitativo (artigo 51.º, n.º 2 do Código de Processo do Trabalho (CPT)).

Ora, tendo em conta a lógica subjacente à proibição de remissão abdicativa, é com estupefação que constatamos a intenção de retroceder e erradicar tal proibição. O recentíssimo Anteprojeto de Lei da reforma da legislação laboral, reformulando o artigo 337.º, n.º 3 do CT, estabelece que os créditos laborais não são suscetíveis de extinção por remissão abdicativa, salvo nos casos em que o trabalhador declare expressamente a renúncia ao mesmo em declaração escrita reconhecida notarialmente nos termos da lei.

Se, em nossa opinião, a norma resultante da Agenda do Trabalho Digno teve o mérito e o fundamento de situar a proibição de remissão abdicativa no plano da empresa, no momento pré-cessação do contrato de trabalho, a eventual alteração terá o demérito de eliminar, evidentemente, tal proibição. A eliminação da proibição dependerá, tão-somente, do cumprimento de um requisito extrajudicial: declaração escrita do trabalhador reconhecida por notário. Por outras palavras, o acordo tendente à extinção de créditos laborais voltará a ter validade e eficácia, ficando dependente de um mero requisito extrajudicial.

Trata-se de um passo atrás e que, prejudicando o trabalhador, beneficia, simultânea e injustificadamente, o empregador e o juiz. O primeiro, aproveitando a debilidade e/ou necessidade do trabalhador, retomará a prática de “extorsão” de declarações de vontade, tendentes à celebração de “acordos” de remissão abdicativa, exonerando-se da realização das suas obrigações. O segundo, verá diminuir a litigância, uma vez que a remissão impede, ou pelo menos estorva, a reclamação dos créditos remidos, pela via judicial. Por sua vez, a comparação entre o requisito de validade da remissão abdicativa resultante da Agenda do Trabalho Digno e aquele resultante da leitura do Anteprojeto, redunda num exercício quase anedótico. Se é certo que o juiz está vinculado ao dever de se empenhar ativamente na obtenção de um acordo justo e adequado entre empregador e trabalhador, também é certo que ao notário é completamente indiferente se a remissão abdicativa é justa e/ou adequada, uma vez que a sua função se esgota no reconhecimento da declaração escrita do trabalhador.  

Destarte, impera, nesta fase, o bom senso e a promoção de um debate profícuo e honesto a respeito. Pese embora o Anteprojeto de Lei da reforma da legislação laboral pareça consagrar algumas medidas aparentemente positivas, a vertida no referido texto, que conduz ao ocaso da invalidade do acordo de remissão celebrado entre empregador e trabalhador, constitui um retrocesso que demanda ponderação e reflexão. Parece-nos excessivamente “patronalista”, estimula a inadimplência e, acima de tudo, olvida os legítimos interesses do trabalhador.

[1] Fundada, por ex., na impossibilidade de denunciar o contrato com o aviso prévio adequado.

[2] Exceto provando vício da vontade.

[3] Que serão, naturalmente, inválidos e ineficazes, não impedindo o trabalhador de reclamar os créditos laborais objeto do acordo de remissão, dentro do prazo previsto no artigo 337.º, n.º 1 do CT. Neste sentido, cfr. Ac. Rel. Guimarães de 24/4/2024. Processo 1643/24.2T8BCL.G1.