Eduardo António da Silva Figueiredo

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Eduardo António da Silva Figueiredo é Assistente Convidado da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra (FDUC); Investigador Colaborador do Instituto Jurídico da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra (IJ/FDUC; Área Científica: Democracia); Investigador Associado do Centro de Direito Biomédico da FDUC; e Investigador Associado do Ius Gentium Conimbrigae – CDH/FDUC. 
É Licenciado em Direito (2017), Mestre em Ciências Jurídico-Políticas, com Menção em Direito Constitucional (2019) e Doutor em Direito Público (2025), pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra (FDUC). 
É autor de diversos artigos e monografias na área da filosofia e teoria geral dos direitos humanos e fundamentais; da corrupção e direitos humanos; do direito da nanobiotecnociência; do direito da saúde; e do direito da igualdade e não discriminação.


Um dos ramos do Direito que, ao longo das últimas décadas, logrou autonomizar-se foi o Direito da Igualdade e da Não Discriminação. Incumbe-lhe, desde logo, encetar uma análise crítico-reflexiva da(s) igualdade(s) e das suas múltiplas projeções no mundo da juridicidade, como valor, princípio ou até mesmo como direito (ou, se quisermos, como elemento qualificador de cada um dos direitos e liberdades). Note-se que a formulação que adotamos é complexa ou mista, ou seja, não pode ser simplesmente reconduzida nem ao Direito da Igualdade nem ao Direito Antidiscriminação. E isto porque, segundo cremos, as dimensões da igualdade (stricto sensu) e da proibição de discriminação não devem ser tratadas como dois universos distintos, mas antes como duas galáxias que integram um mesmo universo, não obstante as suas idiossincrasias. Assim, pensamos não ser possível compreender verdadeiramente os fenómenos de discriminação, opressão e marginalização se não forem tidos em conta vários aspetos convocados pela igualdade em si mesma. Só assim se criam condições favoráveis à edificação de uma comunidade justa e inclusiva, afirmando-se com clareza a importância do vetor da igualdade (lato senso) enquanto espinha dorsal da dignidade da pessoa humana e dos direitos humanos e fundamentais, quando não também de toda a ordem jurídica.

Ora, a referida natureza complexa ou mista do Direito da Igualdade e da Não Discriminação abre caminho à sua dissecação, desde logo com vista à apreensão das especificidades verificadas em cada um dos domínios que integram o respetivo âmbito de aplicação, analisado quer em termos subjetivos quer objetivos. Tal tem inclusive levado alguns Autores a enquadrar aqui um conjunto de disciplinas que, em suma, procuram encetar uma espécie de corte transversal do Direito (abrangendo tanto áreas de direito público, como de direito privado; de direito interno, como de direito transnacional) na perspetiva de diferentes categorias discriminatórias, como é o caso do Direito das Mulheres, do Direito da Igualdade Racial ou do Direito da Deficiência. Estas disciplinas seriam, portanto, meros campos de estudo no seio do Direito da Igualdade e da Não Discriminação – este sim, um ramo do direito autónomo, desde logo em razão da existência de uma base axiológico-valorativa, de institutos jurídicos (pensemos, por exemplo, nas várias categorias de discriminação que vêm sendo desenvolvidas normativa, doutrinal e jurisprudencialmente) e de mecanismos de tutela, todos eles próprios ou com particularidades de monta.

Acontece que aquelas disciplinas, todas elas ainda relativamente jovens (e sendo certo que o seu desenvolvimento não tem sido uniforme, conhecendo velocidades muito diferenciadas consoante as ordens jurídicas), se têm desenvolvido significativamente e, muitas até, reclamado autonomia dogmática. Não é difícil descortinar porquê. Por exemplo, as preocupações do Direito da Deficiência parecem ir além daquelas que interpelam o Direito da Igualdade e Não Discriminação, ali se incluindo questões decorrentes, em geral, de uma teoria jurídica da corporeidade e, em especial, de uma situação de “capacidade diversificada”, aqui entendida como principal fator produtor da experiência de opressão sociopolítica que a deficiência é. Além disso, afirmam alguns, a discriminação, opressão e marginalização com base na deficiência assume idiossincrasias que justificam a sua autonomização face a outras categorias suspeitas, como é o caso do sexo-género ou da “raça”/etnia[1].

Concedendo que o âmbito do Direito da Igualdade e Não Discriminação poderá não vir a esgotar os daquelas várias disciplinas, parece-nos que uma parte importante – talvez mesmo, nuclear – destes coincidirá com aquele, não apenas no plano da theoria mas também da praxis. Assim, talvez a melhor forma de enquadrar a questão seja reconhecer o Direito da Igualdade e Não Discriminação como uma espécie de disciplina-mãe, que promove unidade, coerência e articulação mútua, sem que tal ponha em causa os processos de autonomização dogmática em curso das suas disciplinas-filhas[2]. E isto sem nunca olvidar que nenhuma disciplina, por mais autónoma que seja, existe como uma “ilha”, devendo encontrar-se em permanente diálogo com outras da mesma área do saber, e até para além dela (o que é importante frisar, considerando que a interdisciplinaridade está aqui bastante presente).

É justamente neste contexto que devemos enquadrar o Direito da Orientação Sexual, da Identidade e Expressão de Género e das Caraterísticas Sexuais. Como foi dito, está em causa uma disciplina que visa encetar uma espécie de corte transversal do Direito na perspetiva daquelas categorias, desde logo com vista a descrever e analisar a situação jurídica dos membros das minorias sexuais e de género. Sendo certo que tal exercício tem de atender às variações daquela situação ao longo do tempo e do espaço, inclusive enfrentando as suas ambiguidades e contradições. Quando comparado com as demais disciplinas já mencionadas, evidencia-se a sua juventude, sendo ainda relativamente escassos os dados normativos, doutrinais e jurisprudenciais na matéria. Assim, e não rejeitando a possibilidade de autonomização dogmática futura, é difícil ver hoje esta disciplina como mais do que um campo de estudo do Direito da Igualdade e Não Discriminação, que pode e deve ser aprofundado.

Assim, esforços devem ser encetados para que a situação jurídica dos membros das minorias sexuais e de género seja descrita e analisada com recurso[3]:

  1. A normas jurídicas transnacionais (internacionais e regionais) e nacionais, independentemente da sua força normativa (hard ou soft law), conquanto suscetíveis de conformar a realidade e as práticas em curso;
  2. A outras fontes do Direito, com particular destaque para a doutrina e para a jurisprudência;
  • À própria realidade social, não apenas procurando apurar como o Direito vem sendo condicionado pela mesma nestes domínios em específico, mas também como vem ajudando a condicionar aquela.

Por outro lado, e não obstante a abordagem encetada por esta disciplina seja necessariamente jurídica, a compreensão cabal do papel desempenhado pelo Direito na edificação da situação jurídica dos membros das minorias sexuais e de género não será possível sem um sólido enquadramento extrajurídico – e até em constante articulação com ele –, porquanto as teorias e as práxis discriminatórias “germinam e cultivam-se em muitas outras áreas da ciência, da prática quotidiana, das regras ‘informais’ de convivência ou, simplesmente, nos modos habituais de fazer as coisas”[4].

A verdade é que, apesar de assentar sobre dimensões centrais da vida humana e com estreita conexão com os direitos e liberdades humanas e fundamentais de cada pessoa, o Direito da Orientação Sexual, da Identidade e Expressão de Género e das Caraterísticas Sexuais tem sido praticamente ignorado pelos operadores jurídicos em Portugal. Foi justamente na esperança de colmatar esta lacuna que tomámos a iniciativa de coordenar uma obra coletiva sobre o tema, a ser publicada muito em breve pela Editora Almedina. A mesma reunirá quase duas dezenas de estudos sobre questões gerais (a partir de uma metodologia interseccional) e específicas (crimes e penas, família, saúde, educação, habitação, desporto, trabalho, etc.), os quais foram elaborados por juristas provenientes de diferentes Escolas e com mundividências e experiências heterogéneas, como não poderia deixar de ser. Que os leitores – académicos, juristas e cidadãos em geral – possam encontrar nestes textos uma série de pontos de partida para as reflexões e debates que nos interpelam no presente, mas também para aqueles que nos hão de (continuar a) interpelar no futuro.  

[1] Por exemplo, entre nós, vd. Filipe Venade de Sousa, Direitos fundamentais das pessoas com deficiência e jurisprudência multinível, Lisboa: Universidade Católica Editora, 2021, 25 (embora referindo-se ao “Direito das Pessoas com Deficiência”).

[2] Voltando a debruçar-nos sobre o Direito da Deficiência, importa notar que, não obstante o seu âmbito esteja em permanente expansão (quer em termos subjetivos quer objetivos), há que reconhecer que foi o problema da discriminação, opressão e marginalização com base naquela categoria que esteve na sua génese. Aliás, ainda hoje, é esse que continua a ser o seu principal objeto de estudo.

[3] Seguimos de perto a construção levada a cabo por Teresa Pizarro Beleza, Direito das mulheres e da igualdade social: a construção jurídica das relações de género, 82 e ss., embora no contexto do designado Direito das Mulheres

[4] Teresa Pizarro Beleza, Direito das mulheres e da igualdade social: a construção jurídica das relações de género, 102.