Joana Neto

Licenciada em Direito pela FDUP.

Pós-graduada em Direito do Trabalho pelo IDET- FDUC.

Mestre em Direito do Trabalho e das Empresas pelo ISCTE-IUL.

Doutorada em Direito pela FDUNL.


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O Direito tem esse potencial de dar corpo, de tornar efetivas, a partir de um acervo de normas, as transformações a que, legitimamente, os cidadãos aspiram. Por seu turno, a investigação científica pode dar um impulso à reflexão em temas mais invisibilizados. É nesse encontro entre o Direito e a investigação que as obras jurídicas vão nascendo. E é na incompletude imperfeita, mas que aspira transformação, que vão surgindo, também, timidamente, os estudos sobre deficiência.

A deficiência é, nos nossos dias, uma condição de vulnerabilidade. De acordo com dados europeus, existem cerca de 100 milhões de pessoas com deficiência na União Europeia, sendo que apenas metade das pessoas com deficiência estão empregadas[i]. Em Portugal estima-se que existam mais de 1 milhão de pessoas com deficiência. Em 2021, a diferença entre as pessoas com e sem deficiência que estavam empregadas era de 16,2 pontos percentuais (‘disability employment gap’)[ii].

A Convenção dos Direitos das Pessoas com Deficiência (CDPD) datada de 2006, ratificada por Portugal em 2009 e pela União Europeia (UE) em 2011, veio dar corpo a um modelo de direitos humanos de proteção em razão da deficiência. No seu artigo 27.º, a CDPD reconhece o direito das pessoas com deficiência a trabalhar, em condições de igualdade. Esta Convenção foi precedida por um outro instrumento muito relevante, a Diretiva 2000/78/CE, a Diretiva para a igualdade no emprego, Diretiva essa que foi transposta, no essencial, pelo ordenamento jurídico português, em 2003, sem qualquer densificação normativa que lhe fizesse jus e que contemplava a adoção de medidas eficazes e práticas destinadas a adaptar o local de trabalho em função da deficiência.

No plano supranacional, estes dois instrumentos, a CDPD e a Diretiva, tiveram um impacto determinante para a conceção de deficiência adotada pelo Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE), bem como para a compreensão das medidas que integram a adaptação razoável do posto de trabalho.

Entre nós, a tutela laboral das pessoas com deficiência[iii], seja ela direta, se dirigida aos trabalhadores com deficiência, ou indireta, quando se direciona para os trabalhadores com pessoas com deficiência a cargo, tem respaldo na legislação laboral, designadamente no Código do Trabalho (CT).

A proteção laboral em apreço opera com um conjunto de conceitos chave, nomeadamente os de vulnerabilidade, desvantagem, deficiência, doença crónica e incapacidade e pode-se subsumir a três esferas essenciais:

i) a tutela discriminatória, consagrada nos artigos 23.º e seguintes do CT, onde se definem vários conceitos em matéria de igualdade e não discriminação, como discriminação direta e indireta;

ii) as medidas gerais de ação positiva, onde encontramos a dispensa de medidas de flexibilização do tempo de trabalho, como é o caso da adaptabilidade ou banco de horas e a legislação de quotas no acesso ao emprego que vigora quer para o setor público quer para o setor privado;

iii) as medidas individualizadas de diferenciação, nas quais se inclui a adaptação razoável do posto de trabalho, prevista no artigo 86.º do CT e mencionada no artigo 84.º do CT.

A proteção laboral das pessoas com deficiência tem lugar em todos os momentos essenciais da relação contratual:

i) no acesso ao trabalho, através de medidas de discriminação positiva, onde se encontra, por exemplo, o sistema de quotas;

ii) na pendência da relação de trabalho através, por um lado, da adaptação razoável do posto de trabalho – isto é, da tomada de medidas adequadas para que a pessoa tenha acesso a um emprego, o possa exercer e nele progredir, ou para que tenha formação profissional, exceto se tais medidas implicarem encargos desproporcionados – e, por outro lado, de medidas de ação positiva, nomeadamente as previstas nos artigos 86.º a 88.º do CT, tais como a especial proteção na parentalidade, as mudanças no regime de faltas e licenças e a dispensa de modalidades de flexibilização de tempo de trabalho;

iii) na cessação do contrato, por via de restrições ao recurso abusivo ao despedimento por inadaptação, ao despedimento ‘com justa causa’ e à caducidade do contrato por impossibilidade superveniente e definitiva do trabalhador prestar trabalho, nomeadamente pela verificação de um requisito adicional, o da realização prévia de medidas de adaptação razoável.

A tutela laboral das pessoas com deficiência, a nível nacional, está, assim, plasmada em vários preceitos do CT, sendo de salientar dois problemas:

i) o recurso a uma multiplicidade de conceitos, trabalhador com capacidade de trabalhado reduzida, trabalhador com doença crónica, trabalhador com doença oncológica – nuns casos parecendo estar indicada como um tipo de doença crónica e na outra como uma modalidade autónoma – e com doença oncológica em fase ativa de tratamento;

ii) a inserção sistemática do conceito de adaptação razoável nas medidas de ação positiva. Veja-se o n. º1 do artigo 86.º do CT, que integra a noção de adaptação razoável do posto de trabalho nas medidas de ação positiva, como se essa previsão não devesse ser autonomizada. Convém notar que as medidas de ação positiva são destinadas a um grupo de trabalhadores que reúnam uma determinada característica que os coloca em situação desvantagem, ao passo que a adaptação razoável integra medidas individualizadas destinadas a uma pessoa com deficiência com vista a responder às suas necessidades concretas. Tratam-se, assim, de dois conceitos com um âmbito de aplicação diferenciado, mas comummente tratados de forma indistinta.

A adaptação do posto de trabalho de um trabalhador tem como limite o encargo desproporcionado que possa representar para o empregador, a menos que existam apoios públicos destinados a compensá-lo. Em Portugal existem, por exemplo, as ajudas técnicas, isto é, a disponibilização de equipamentos, instrumentos ou tecnologia adaptados para pessoas com deficiência, com o objetivo de melhorar a sua funcionalidade e autonomia pessoal.

No entanto, muitas vezes os custos decorrentes da adoção de medidas de adaptação razoável são pouco significativos e com vantagens para a generalidade dos trabalhadores em matéria de proteção de riscos. Pense-se, por exemplo, na colocação de fios elétricos dentro de calha para responder a uma necessidade de um trabalhador cego. Esta medida de adaptação razoável pode ser vantajosa, tornando o ambiente de trabalho mais limpo e é uma medida de proteção de riscos de acidentes de trabalho do qual todos beneficiam.

Estas formas de tutela dos trabalhadores com deficiência são aplicáveis a um universo heterogéneo de trabalhadores uma vez que o conceito de deficiência tem vindo a adquirir maior amplitude, por força da interpretação do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE). A jurisprudência deste tribunal tem considerado dentro da esfera de proteção dos trabalhadores com deficiência as situações de doença, sempre que o efeito discriminatório produzido seja idêntico.

No caso de Portugal, o conceito de adaptação razoável não está densificado e não há um elenco exemplificativo de medidas adaptação razoável ou uma tipificação das medidas, ao contrário do que acontece em ordenamentos jurídicos de outros países, como é o caso da Bélgica ou do Reino Unido, onde não só há maior densificação destes direitos como existem guias práticos e informação institucional que contribuem para o seu robustecimento. É de salientar que a nossa legislação antidiscriminação recorre a um conceito inovador, face a outros ordenamentos jurídicos, de pessoa com risco agravado de saúde, conceito este com grande amplitude. Contudo, não é usado no plano laboral.

Assim, ao analisarmos os acórdãos do TJUE encontramos vários exemplos que ilustram a evolução na interpretação do conceito de deficiência e que também nos auxiliam a compreender que medidas são abrangidas pelo conceito de adaptação razoável previsto no artigo 5.º da Diretiva da igualdade no emprego.

No Acórdão Chacón Navas, em 2006, o TJUE pronunciou-se sobre o despedimento, por uma empresa espanhola, a Eurest, de uma trabalhadora, Sónia Chacón Navas, durante uma licença por doença. Neste caso, a empresa assumiu a irregularidade do ato e pagou uma indemnização. No entanto, de acordo com a lei espanhola, em caso de despedimento discriminatório, os trabalhadores devem ser reintegrados. A decisão ocupou-se de duas questões essenciais, a primeira, saber se a trabalhadora despedida apenas devido à sua doença era abrangida pelo âmbito de proteção da Diretiva 2000/78 e se, assumindo uma resposta negativa a esta primeira questão, era possível considerar a doença como uma característica adicional àquelas em que a diretiva proíbe a discriminação.

Em 2013, já depois da ratificação da CDPD por parte da União, no processo HK Dinamarca, o TJUE debruçou-se sobre o despedimento das trabalhadoras: Jette Ring e L. Skouboe Werge.

Jette Ring sofria de dores lombares permanentes sem tratamento, pelo que faltava repetidamente e, depois disso, foi informada do seu despedimento.

Skouboe Werge padecia de uma patologia designada como “golpe de coelho”, que lhe causava dores intensas e a quem foi atestado, posteriormente, que estava apta para trabalhar, a um ritmo lento, durante oito horas por semana.

No caso concreto, o empregador recusou a medida de redução de horário por considerar que esta medida não era uma medida de adaptação razoável. O TJUE teve de se pronunciar sobre dois aspetos essenciais: i) saber se as medidas de adaptação (de adaptação do e redução do horário) solicitadas eram enquadráveis no conceito de adaptação razoável e ii) definir qual o critério (temporal) para aferir a existência de uma deficiência.

 O TJUE tem sido chamado a pronunciar-se sobre situações de discriminação por associação.

Em 2008, no caso Coleman, foi considerado existir discriminação no caso de assédio de uma funcionária cujo filho tinha deficiência. Tratou-se de um caso de discriminação múltipla e por associação uma vez que a Sra. Coleman era mulher e única cuidadora do filho com deficiência.

Outro aspeto que foi apreciado pelo TJUE prendia-se com saber se o facto de o trabalhador contribuir com o seu comportamento para a situação de doença afasta ou não a tutela da discriminação em razão da deficiência.

Na decisão Kaltof um trabalhador, alegadamente, foi despedido com base na sua obesidade. Esta decisão permitiu clarificar que mesmo que a deficiência tenha sido causada pela obesidade do trabalhador, o facto de as circunstâncias terem sido motivadas pelo comportamento daquele, não é suficiente para excluir a aplicação da diretiva.

No AcórdãoZ., que envolvia uma trabalhadora que sofria de uma doença rara que a impedia de engravidar e a quem foi recusada uma licença remunerada equiparada a uma licença de maternidade ou a uma licença por adoção após o nascimento do seu filho através de um contrato de maternidade de substituição, o TJUE teve de apreciar se uma limitação física sem impacto direto na atividade profissional se deveria ou não considerar uma discriminação em razão de deficiência.

Mais recentemente, o mesmo tribunal proferiu uma decisão que envolvia uma sociedade anónima de direito público a HR Rail, uma empresa dedicada à seleção e recrutamento de pessoal para o desempenho das funções da sociedade Infrabel SA e da Société nationale des chemins de fer belges (SNCB) e um agente de manutenção especializado em vias-férreas. O trabalhador, que iniciou o seu estágio, na sociedade Infrabel, em 2016, e a quem foi, no ano seguinte, diagnosticado um problema cardíaco que requereu a colocação de um pacemaker – um aparelho sensível aos campos eletromagnéticos emitidos, designadamente, pelas vias-férreas – razão pela qual já não estava em condições de exercer as funções para as quais tinha sido inicialmente contratado, foi despedido. A sentença debruçou-se sobre duas questões, uma questão prévia, a de saber se todos os trabalhadores beneficiam da proteção da Diretiva independentemente do vínculo contratual e a questão essencial que se prende com a inclusão, no conceito e nas medidas de adaptação razoável, da reafectação do trabalhador a outro posto de trabalho disponível.

Estes Acórdãos evoluíram no sentido de atribuir maior amplitude ao conceito de deficiência. Não obstante, há algumas dificuldades com que o Tribunal se tem debatido: i) determinar se a limitação em apreço tem caráter duradouro dada a ausência de critérios objetivos que a balizem; ii) definir como enquadrar situações que, ainda que não originem uma limitação, podem evoluir negativamente e desencadear uma deficiência futura.

Contudo, a proteção em razão da deficiência não se cinge à proteção laboral e relaciona-se com um conjunto de outros diplomas, designadamente a Lei da Reabilitação, isto é, a lei que define as bases gerais do regime jurídico da prevenção, habilitação, reabilitação e participação da pessoa com deficiência, a mencionada Lei de combate à discriminação das pessoas com deficiência, os diplomas que implementam o Modelo de Apoio à Vida Independente ou o Regime do Maior Acompanhado, procuram concretizam, de forma mais ampla, o direito das pessoas com deficiência à participação na sociedade , de forma plena e em condições de igualdade.

O processo da agenda do trabalho digno e os avanços que introduziu em matéria de proteção laboral em vários domínios careceria de um aprofundamento que pudesse contribuir para um mundo do trabalho onde todas as pessoas tenham lugar. Não se vislumbra, no quadro do programa do Governo, uma resposta legal adequada às pessoas com deficiência e que possa, assim, contribuir para ambientes de trabalho mais sãos para todos com enormes vantagens em termos de prevenção de riscos, de promoção da saúde física e mental e consequentemente contribuir para o aumento da produtividade e da inovação. Veremos qual o contributo do diálogo social e qual será o lastro legislativo nesta matéria…

Estes Estudos sobre deficiência e risco agravado de saúde são um somatório de indagações, de contributos, de reflexões, aos quais acresce a legislação mais relevante que as suportou e consubstanciam, sobretudo, uma ferramenta de trabalho. São, ou aspiram ser, mais um lugar de diálogo crítico, diálogo que só o leitor pode, verdadeiramente, iniciar…

«Com efeito, Saunderson falava com os alunos como se estes estivessem privados da vista; um cego que se exprime com clareza para cegos deve ter grandes vantagens com gente que vê; eles têm um telescópio a mais».[iv]

[i] Conselho da União Europeu, Deficiência na UE: factos e números. Disponível em: https://www.consilium.europa.eu/pt/infographics/disability-eu-facts-figures/ (Consultado em 25/06/2025)

[ii] Observatório da Deficiência e Direitos Humanos, Report: People with Disabilities in Portugal – Human Rights Indicators 2022

[iii] Para maiores desenvolvimentos, cfr. Joana Neto, A Adaptação Razoável do Posto de Trabalho e a Tutela Laboral na Doença e na Deficiência, Gestlegal, 2024.

[iv] Denis Diderot,«Carta sobre os cegos para uso daqueles que vêem», Nova Vega, 2019, cit. pp. 54-55