
Tomás Carvalho Guerra
Licenciado em Direito, FDUCP
Mestrando em Direito Internacional e Europeu, FDUCP
Conselheiro Científico na Revista Ex Libris (AAFDL Editora)
Coordenador da Comissão Executiva da Revista Vere Dictum Binário (AAFDL Editora) Investigador Júnior no Observatório da Aplicação do Direito da Concorrência, FDUCP
Consulte a sua obra neste link.
O Direito, como produto orgânico do Homem, caracteriza-se, numa expressão inspirada em Heidegger, como um In-der-Welt-Recht atirado a um mundo que o precede (Geworfenheit), isto é, é uma realidade patentemente histórica, um cemitério de passadas encarnações. Neste cenário ontológico, o Direito é, também, um Recht-zum-Tode, ou seja, é caracterizado por um devir induzido por condicionalismos externos e que necessita de morrer para, depois, renascer ligeiramente mais próximo da Ideia de Direito[1]/[2].
Nesse sentido, enquanto arquétipo ontológico-metafísico de uma consciência coletiva, as diversas ramificações do Direito absorvem essa característica transformadora, sobretudo quando consideramos o papel das instituições sociais – como a Família, o Estado, a Economia e a Propriedade – na sua criação, conforme ensinava Baptista Machado e Oliveira Ascensão. Deste modo, as mais recentes alterações, digitalmente introduzidas ou espoletadas por puro devir já pré-definido do mundo, têm colocado o Direito na sua já conhecida tensão entre o ser e o dever ser, entre o passado e o futuro.
Pensemos, por exemplo, no Direito da Concorrência. O Direito da Concorrência, que possui uma base profundamente sensível ao devir temporal – especialmente à Nova Era Digital –, edifica-se num espaço em conflito que pressupõe uma constante batalha de forças, visto que, como os Gregos cedo perceberam, todos os participantes no mercado procuram conquistar algo. Como bem salienta Ricardo Filipe Costa, “[i]n a rapidly changing world, competition law in the European Union has known unprecedent developments in the past few years”[3]. Este ramo “mais económico” do Direito tem, ipso facto, sofrido profundas alterações, especialmente num contexto em que, conforme sublinha implicitamente o Relatório Draghi, se atravessam simultaneamente uma Revolução Digital, uma Revolução Industrial e uma Revolução Política. É neste exato enquadramento que se procurou introduzir uma nova obra no mercado que permita que todos aqueles que se envolvam com as matérias do Direito da Concorrência possam alavancar a sua “posição dominante” nas matérias passadas para se estabelecerem no futuro. Longe de pretender apresentar-se como um manual geral, o livro que será publicado surge como uma coletânea de textos de reguladores, advogados, juristas e economistas que se unem para discutir os mais recentes temas do Direito da Concorrência no Século XXI.
Deixando de lado, por ora, a metamorfose regulatória do Direito da Concorrência, as transformações no setor bancário[4], no setor do desporto[5] e em matérias de private enforcement[6] e de controlo de concentrações[7], importa mencionar que o Relatório Draghi evoca um espírito reminiscente de Jacques Delors, que, em 1985, já alertava para a visão de um mercado único cada vez mais distante, marcado pela perda de confiança e visão no Projeto Europeu. Na introdução, pinta-se o retrato de uma Europa que parece desacelerar, correndo o risco de se tornar irrelevante, mas que, ao mesmo tempo, mantém uma fervente vontade de crescimento, uma espécie de Wille zum Leben, ou Wille zur Macht – uma energia transformadora que se traduz na busca incessante de inovação. Apesar de ser um ponto de inflexão para a União Europeia, o relatório peca por alguns equívocos de perceção, apresentando sinais contraditórios e deixando de considerar elementos fundamentais, como a demografia e o impacto do Estado Social, tal como assinala Tânia Luísa Faria[8].
A Nova Era Digital, marcada pela omnipresença e por um pan-óptico deleuziano omnisciente, impõe desafios tanto na teoria quanto na prática do Direito da Concorrência. Por exemplo, Rita Ferreira Gomes, ao abordar as possíveis soluções jurídicas para a colusão algorítmica, suscita preocupações quanto ao enquadramento destas práticas no artigo 101.º, TFUE, perante algoritmos inteligentes com foco na aprendizagem que podem determinar preços de forma autónoma, “[…] tendo o potencial de levar a uma situação de colusão onde a determinação da responsabilidade legal se revela um verdadeiro desafio”[9]. Em adição, Sofia Pires[10] identifica de uma perspetiva económica, ainda que brevemente, mas com o suporte de vasta literatura, desafios como a inadequação do teste SSNIP aos mercados digitais, a emergência de monopólios naturais no âmbito do machine learning e a complexa medição dos impactos económicos num ambiente digital em expansão. Por sua vez, Manuel Cabugueira e João Pateira Ferreira sublinham a insuficiência da intervenção regulatória e jusconcorrencial no ecossistema digital e discutem as dificuldades de intervenção ex-ante e os desafios de intervenção ex-post nestas áreas, realçando a importância de uma “[…] intervenção mais flexível e dinâmica”[11].
A Revolução Industrial, aqui entendida como uma proliferação de outras formas de dinheiro (no sentido mais funcional do termo, e.g., dados) numa economia que luta contra o peso do passado e que tenta crescer sustentavelmente para satisfazer as necessidades do futuro, trouxe, também, para a ribalta questões cruciais para o Direito da Concorrência. Entre estas, destacam-se a proteção do ambiente – tema abordado nos discursos de Ursula von der Leyen para o mandato de 2024–2029 e no Capítulo 9 das Orientações Horizontais de 2023 – e a interseção entre a proteção de dados e o direito à privacidade com o Direito da Concorrência. Quanto ao ambiente, e relembrando que há quem considere, hoje, que a proteção do ambiente é, em si, um novo objetivo do próprio Direito da Concorrência[12], Margot Lopes Martins e Afonso Marques dos Santos relembram que as orientações atualizadas “[…] refletem as mudanças nos ambientes de mercado, como a digitalização e a sustentabilidade […]”[13]. No seio de uma visão mais económica, como alertam Rita Prates e Ricardo Bayão Horta, a promoção e a defesa da concorrência ficaram, de certa forma, encerradas num universo autossuficiente, afastadas da influência de realidades externas, “[…] apesar do bem-público concorrência ser um instrumento de política económica, dirigida à promoção do bem-estar do consumidor” (o consumidor é, portanto, membro de uma comunidade mais vasta de cidadãos inseridos numa determinada sociedade que partilha valores comuns, como direitos humanos, inclusão, diversidade, ética, promoção e defesa do ambiente ou boas práticas das instituições em que participam)[14]. Quanto à interseção entre o Direito da Concorrência e a Proteção de Dados, seguindo Luís Pinto Monteiro e Catarina de Vasconcelos Fernandes, a necessidade de tal ligação reveste-se de particular evidência a partir do momento em que percebemos que os “[…] dados pessoais assumem um valor primordial na economia digital” e que “[o] seu tratamento pelos titulares de ecossistemas digitais origina desafios para os quais nem sempre estamos preparados”[15].
Por fim, a Revolução Política – entendida como uma mudança estrutural nas relações internacionais e marcada pela reconfiguração dos vínculos tradicionais com os Estados Unidos – apresenta-se como um elemento capaz de afetar a União Europeia (como reconhece o Relatório Draghi), sobretudo no que diz respeito à cooperação entre as 3 autoridades da concorrência mais importantes do panorama ocidental do Direito da Concorrência: a Federal Trade Commission (USA), a Comissão Europeia (UE) e a Competition and Markets Authority (UK). O Direito da Concorrência, apesar de adquirir os seus contornos nacionais e regionais, não deixa de ser um ramo jurídico-económico derivado de uma necessidade ontológica transversal que se agrava com a globalização e mundialização catapultadas pelas novas tecnologias, pelo que o seu aparecimento em várias regiões do globo é comum, embora a sua “naturalidade” aristotélica acabe por depender de escolhas políticas; o que significa que, no contexto das relações internacionais, a cooperação entre as várias entidades que se envolvem no enforcement do Direito da Concorrência é, no mínimo, uma parte importante da sua construção: “[…] the reality of the situation, therefore, is that for better or for worse competition and competition law intertwine with many forces at all levels of international relations. The major trends in competition today – globalisation of markets and increasing concerns over national competitiveness – require a sophisticated understanding of the complex interdependence between the competition ethos, the complicated structure of international relations and the powerful attitudes alive in international political life”[16]. De facto, à semelhança do que tem sucedido com os Estados em desenvolvimento no que diz respeito à criação de uma estrutura jusconcorrencial coesa, também nós, europeus, retiramos vantagens de uma relação cooperativa com entidades que já trabalham o Direito da Concorrência há muito mais tempo do que nós. Por seu turno, estas entidades beneficiam dos nossos contributos por força de uma visão mais recente, que foi construída (e não apenas adaptada) num mundo não muito diferente do atual.
Em geral, face a todas estas mudanças, acreditamos verdadeiramente que, como afirma Tânia Luísa Faria, “[…] uma obra coletiva em matéria de regulação e concorrência é particularmente corajosa e particularmente necessária, sendo, igualmente, notável o conjunto alargado de temas abordados, dos acordos de sustentabilidade a regulação económica ‘quântica’, e a diversidade de vozes que se fazem ouvir, de reguladores, a advogados, a membros da academia”[17].
[1] Com mais detalhe: Guerra, Carvalho (2025). Filosofia do Direito Digital: Uma Breve Introdução – Volume I. Edições Illuvatar, com a colaboração de Carolina Lamy, e Guerra, Carvalho (2025). O Direito, o Tempo e a Morte: Ecos do Recht und Zeit, da Perceção e do Sein-zum-Tode. AAFDL Editora.
[2] Pires, Sofia; Guerra, Carvalho (2025). Competition in the Metaverse Age: The Birth of a New Era in Economics and Legal Philosophy. In “Ensaios de Direito e Política da Concorrência: Navegar o Mercado no Século XXI”, Almedina, eds. André Alfar Rodrigues & Carvalho Guerra, em curso de publicação.
[3] Costa, Ricardo Filipe (2025). What Place for Competition Law? A Reflection on Where Competition Law Stands in an Increasingly Multi-layered Regulatory Framework. In “Ensaios de Direito e Política da Concorrência: Navegar o Mercado no Século XXI”, Almedina, eds. André Alfar Rodrigues & Carvalho Guerra, em curso de publicação.
[4] Cfr., Rodrigues, Sara M. (2025). O Too Big to Fail à Luz das Especificidades do Setor Bancário: A Concorrência e a Supervisão das Grandes Instituições Bancárias. In “Ensaios de Direito e Política da Concorrência: Navegar o Mercado no Século XXI”, Almedina, eds. André Alfar Rodrigues & Carvalho Guerra, em curso de publicação.
[5] Cfr., Costa, Cláudia Coutinho da (2025). Revolução Silenciosa: A Evolução da Aplicação do Artigo 101.º TFUE no Setor do Desporto. In “Ensaios de Direito e Política da Concorrência: Navegar o Mercado no Século XXI”, Almedina, eds. André Alfar Rodrigues & Carvalho Guerra, em curso de publicação.
[6] Cfr., Ferro, Miguel Sousa; Silva, Ricardo Jorge (2025). O Private Enforcement da Concorrência e a Posição da Comissão Europeia nos Tribunais. In “Ensaios de Direito e Política da Concorrência: Navegar o Mercado no Século XXI”, Almedina, eds. André Alfar Rodrigues & Carvalho Guerra, em curso de publicação, e Martins, André Almeida; Silva, Nuno Sousa e (2025). A Articulação entre Ações de Indemnização Fundadas em Infrações do Direito da Concorrência intentadas por Autores situados em Diferentes Níveis da Cadeia de Produção ou Distribuição: Algumas Notas sobre os Mecanismos Processuais ao Dispor do Tribunal. In “Ensaios de Direito e Política da Concorrência: Navegar o Mercado no Século XXI”, Almedina, eds. André Alfar Rodrigues & Carvalho Guerra, em curso de publicação.
[7] Martins, Margot Lopes; Santos, Afonso Marques dos (2025). Controlo de Concentrações ao Abrigo do Direito da Concorrência: Estado da Arte e Evoluções Recentes. In “Ensaios de Direito e Política da Concorrência: Navegar o Mercado no Século XXI”, Almedina, eds. André Alfar Rodrigues & Carvalho Guerra, em curso de publicação, Moniz, Carlos Botelho (2025). Os Limites da Competência da Comissão Europeia ao Abrigo do Artigo 22.º do Regulamento das Concentrações: O Acórdão do Tribunal de Justiça “Illumina/Grail”. In “Ensaios de Direito e Política da Concorrência: Navegar o Mercado no Século XXI”, Almedina, eds. André Alfar Rodrigues & Carvalho Guerra, em curso de publicação, e Junqueiro, Ricardo Bordalo; Santos, Vasco Costa; Correia, Inês (2025). Regime Português de Controlo de Concentrações: Uma Reforma Necessária. In “Ensaios de Direito e Política da Concorrência: Navegar o Mercado no Século XXI”, Almedina, eds. André Alfar Rodrigues & Carvalho Guerra, em curso de publicação.
[8] Faria, Tânia Luísa (2025). Prefácio – Terraplanismo, Regulação Económica e Bem-estar do Consumidor. In “Ensaios de Direito e Política da Concorrência: Navegar o Mercado no Século XXI”, Almedina, eds. André Alfar Rodrigues & Carvalho Guerra, em curso de publicação.
[9] Gomes, Rita Ferreira (2025). A Mão invisível do Algoritmo: Colusão Tácita, Algoritmos de Fixação de Preço e o Desafio da Responsabilização à Luz do Atual Artigo 101.º do TFUE. In “Ensaios de Direito e Política da Concorrência: Navegar o Mercado no Século XXI”, Almedina, eds. André Alfar Rodrigues & Carvalho Guerra, em curso de publicação.
[10] Pires, Sofia; Guerra, Carvalho (2025). Competition in the Metaverse Age: The Birth of a New Era in Economics and Legal Philosophy. In “Ensaios de Direito e Política da Concorrência: Navegar o Mercado no Século XXI”, Almedina, eds. André Alfar Rodrigues & Carvalho Guerra, em curso de publicação.
[11] Cabugueira, Manuel; Ferreira, João Pateira (2025). Regulação e Concorrência no Ecossistema Digital: Reflexões sobre Gatos, Omeletes e a Abordagem Quântica à Regulação Económica. In “Ensaios de Direito e Política da Concorrência: Navegar o Mercado no Século XXI”, Almedina, eds. André Alfar Rodrigues & Carvalho Guerra, em curso de publicação.
[12] Sobre esta questão, veja-se, Iacovides, Marios; Stylianou, Konstantionos (2025). The New Goals of EU Competition Law: Sustainability, Labour Rights, and Privacy. In European Law Open Cambridge University Press, pp. 1-30.
[13] Martins, Margot Lopes; Santos, Afonso Marques dos (2025). Controlo de Concentrações ao Abrigo do Direito da Concorrência: Estado da Arte e Evoluções Recentes. In “Ensaios de Direito e Política da Concorrência: Navegar o Mercado no Século XXI”, Almedina, eds. André Alfar Rodrigues & Carvalho Guerra, em curso de publicação.
[14] Prates, Rita; Horta, Ricardo Bayão (2025). ESG e Concorrência: “Two Strangers walk into a Bar… Will they Live Together Happily Ever After?”. In “Ensaios de Direito e Política da Concorrência: Navegar o Mercado no Século XXI”, Almedina, eds. André Alfar Rodrigues & Carvalho Guerra, em curso de publicação.
[15] Monteiro, Luís Pinto; Fernandes, Catarina de Vasconcelos (2025). O Direito da Concorrência e a Proteção de Dados: Desafios Atuais no Contecto da Economia Digital. In “Ensaios de Direito e Política da Concorrência: Navegar o Mercado no Século XXI”, Almedina, eds. André Alfar Rodrigues & Carvalho Guerra, em curso de publicação.
[16] Cfr., Fidler, David (1992). Competition Law and International Relations. In International and Comparative Law Quarterly, vol. 41, pp. 563-589.
[17] Faria, Tânia Luísa (2025). Prefácio – Terraplanismo, Regulação Económica e Bem-estar do Consumidor. In “Ensaios de Direito e Política da Concorrência: Navegar o Mercado no Século XXI”, Almedina, eds. André Alfar Rodrigues & Carvalho Guerra, em curso de publicação.