Mário Serra Pereira

Jurista


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A fotografia, mais do que um simples clique, é um ato de vontade, criatividade e conhecimento técnico. No entanto, não é uma ação inócua. A fotografia apreende frações de vida, transportando-as para múltiplos níveis de análise e existência. Este artigo, baseado no trabalho que se desenvolve no livro “Fotografia e Direito”, pretende realçar os principais problemas que se colocam ao fotógrafo, antes e depois do disparo, alertando para as armadilhas legais e éticas que espreitam em cada imagem.

Antes do clique – dilemas…

Um dos primeiros desafios que se coloca ao fotógrafo reside no direito à imagem, no impacto direto que a fotografia tem na relação com os outros. Quando é preciso o consentimento expresso? Quais as exceções? Como obter o consentimento tácito?

A Constituição da República Portuguesa garante a liberdade de expressão e criação, mas também impõe limites, nomeadamente quando colidem com os direitos de terceiros. O fotógrafo deve estar ciente de que a sua liberdade pode ser restringida em prol da proteção da imagem e da privacidade alheias.

O consentimento tácito – a linha ténue, mas possível

Em rigor, para tranquilidade de todos os envolvidos, o consentimento deve ser obtido de modo expresso, pelas várias formas que a lei admite. Pode recorrer-se ao típico contrato ou, no limite, à junção de diferentes elementos que, em conjunto e de modo fidedigno, traduzem a vontade das partes.

Porém, é igualmente válido o consentimento tácito. Esta questão é particularmente complexa e tem sido objeto de diversas decisões judiciais. O consentimento tácito verifica-se quando, de forma implícita, a pessoa fotografada permite que a sua imagem seja capturada ou utilizada. No entanto, a interpretação desta permissão nem sempre é clara, e o fotógrafo deve ser cauteloso.

No livro, é explorada a dificuldade de determinar o consentimento tácito. É analisada em detalhe a situação em que a pessoa fotografada não manifestou expressamente a sua oposição, mas também não demonstrou, de forma inequívoca, que concordava com a utilização da sua imagem para fins comerciais e publicitários. A decisão foi favorável ao fotógrafo.

Outro exemplo paradigmático é a fotografia em locais públicos. Fotografar pessoas em espaços públicos é, em geral, permitido, mas a linha que separa o lícito do ilícito é ténue. Se a fotografia for utilizada para fins comerciais ou se violar a intimidade da pessoa, um eventual consentimento tácito pode não ser suficiente para legitimar a sua utilização.

O caso do livro sobre António Variações

A publicação de livros biográficos com fotografias de figuras públicas levanta questões de consentimento. O caso do livro sobre António Variações é elucidativo. A utilização de fotografias do artista sem a autorização dos herdeiros gerou um debate jurídico sobre o direito à imagem post mortem e os limites da liberdade de expressão e criação artística.

Os tribunais portugueses têm reconhecido o direito à imagem post mortem, mas este direito não é absoluto. A utilização de fotografias de pessoas falecidas pode ser permitida se tiver um interesse histórico, cultural ou informativo relevante, desde que não viole a sua memória ou o respeito devido à sua família. Em concreto, o tribunal decidiu favoravelmente à fotógrafa.

Outras autorizações necessárias

Além das limitações anteriores, o fotógrafo deve ter em conta outras autorizações, como as que decorrem da captura de fotografias que incluam a propriedade de alguém, uma obra protegida por Direito de Autor, produtos, objetos, logótipos, marcas, sítios, locais e recintos (por exemplo, restaurantes, estações de transportes, centros comerciais, parques e reservas naturais, monumentos e museus).

O Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados (RGPD) também impõe novas obrigações aos fotógrafos em matéria de tratamento de dados pessoais, incluindo a captura, o armazenamento e a divulgação de fotografias. O fotógrafo deve garantir que cumpre as regras do RGPD, nomeadamente no que se refere à obtenção do consentimento, à informação a prestar às pessoas fotografadas e à segurança dos dados.

Depois do clique: o labirinto do Direito de Autor

O Código dos Direitos de Autor confere proteção às obras fotográficas, reconhecendo-as como criações intelectuais dignas de salvaguarda. No entanto, a lei estabelece algumas especificidades em relação a outras obras artísticas, refletindo a natureza particular do processo fotográfico e as questões que ele suscita.

Uma das principais particularidades reside na exigência de originalidade. Para ser protegida pelo Direito de Autor, a fotografia deve ser original, ou seja, deve refletir a personalidade do autor e não ser uma mera reprodução de uma imagem já existente. Esta originalidade pode manifestar-se na escolha do tema, na composição, na iluminação, no ângulo, no momento do disparo ou no tratamento posterior da imagem.

A originalidade não se confunde com a novidade. Uma fotografia pode ser original, mesmo que retrate um tema já explorado por outros artistas. O que importa é que a fotografia apresente uma visão pessoal e criativa do autor, diferenciando-se das demais.

A questão da originalidade tem sido objeto de debate nos tribunais, com decisões que procuram delimitar o conceito e aplicá-lo aos casos concretos. Em geral, os tribunais têm considerado que a originalidade se verifica quando a fotografia revela um esforço criativo do autor, traduzido em escolhas estéticas e técnicas que conferem à imagem um caráter distintivo.

O Código dos Direitos de Autor consagra o direito do fotógrafo a ver o seu nome indicado na fotografia, sempre que esta seja utilizada ou divulgada. Este direito visa proteger a reputação e o reconhecimento do autor, garantindo que a sua obra seja devidamente identificada.

A indicação do nome do fotógrafo deve ser feita de forma visível e legível, acompanhando a fotografia em todas as suas reproduções e utilizações. A omissão do nome do fotógrafo constitui uma violação do Direito de Autor, podendo dar lugar a ações judiciais e ao pagamento de indemnizações.

Quando a fotografia é realizada no âmbito de um contrato de trabalho ou por encomenda, as regras do Direito de Autor podem ser diferentes das aplicáveis a outras formas de arte. Em geral, o autor da fotografia continua a ser o fotógrafo, mas os direitos patrimoniais de autor (como o direito de reprodução, distribuição e exibição) podem ser transferidos para o empregador ou para quem faz a encomenda, tudo dependendo do acordo realizado.

É importante que o contrato de trabalho ou a encomenda especifiquem claramente a titularidade dos direitos de autor sobre a fotografia, de modo a evitar conflitos futuros. Na ausência de acordo, presume-se que os direitos patrimoniais de autor pertencem ao empregador ou a quem faz a encomenda, desde que a fotografia tenha sido realizada num desses contextos.

Por outro lado, o retrato fotográfico goza de uma proteção especial no Código dos Direitos de Autor. A sua utilização depende, em geral, do consentimento da pessoa retratada ou dos seus herdeiros. Este consentimento pode ser expresso ou tácito, mas deve ser inequívoco.

A fotografia não pode ser utilizada para fins que prejudiquem a honra, a reputação ou a dignidade da pessoa retratada. A utilização indevida desta imagem pode dar lugar a ações judiciais e ao pagamento de indemnizações.

Questão curiosa é a da alienação do negativo ou do ficheiro original da fotografia. Quando esteja em causa um trabalho inteiramente concebido e concretizado pelo fotógrafo, a venda do negativo revelado (exteriorizado) ou do ficheiro original (visualizado num qualquer sistema digital), importa, salvo acordo em contrário, a transmissão do direito exclusivo de reproduzir, difundir e pôr à venda a obra fotográfica.

As especificidades da fotografia no Código dos Direitos de Autor refletem a complexidade da atividade fotográfica. Ao conhecer estas regras, o fotógrafo estará mais bem preparado para exercer a sua atividade de forma ética e legalmente responsável.

Em conclusão

Fotografar é um direito que comporta múltiplos deveres. O fotógrafo deve estar consciente das questões legais e éticas que envolvem a sua atividade, de modo a evitar problemas e a proteger os seus direitos. O livro “Fotografia e Direito” pretende ser um guia prático para navegar neste labirinto, oferecendo respostas para as dúvidas dos fotógrafos, conselhos práticos para a sua atividade e uma reflexão sobre os desafios que a fotografia enfrenta no século XXI.

Ao longo do livro, procura-se transmitir a ideia de que a preparação, o bom senso e o respeito pelos direitos dos outros são os pilares de uma prática fotográfica ética e legalmente responsável. Fotografar é um ato de liberdade, mas também de responsabilidade. Ao dominar as regras do jogo, o fotógrafo estará preparado para capturar imagens com a tranquilidade de quem sabe que está a agir de acordo com a lei e a ética.