Diogo Pereira Coelho

Advogado em prática individual.
Mestre em Direito da Empresa pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa.
Possui estudos de pós-graduação em Direito das Sociedades, Corporate Governance, Corporate Finance, Corporate Finance Digital, E-Commerce, Criptoativos, Inteligência Artificial, Direito Fiscal, Direito Penal, Direito Contraordenacional, Regulação & Compliance, respetivamente organizados pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (CIDP, IDPCC e IDEFF) e pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra (IDPEE).


Consulte a sua obra neste link.


No dia 17.07.23 foi divulgada a Comunicação[1] da Comissão ao Parlamento Europeu, ao Conselho, ao Comité Económico e Social Europeu e ao Comité das Regiões designado de “Iniciativa da UE sobre a Web 4.0 e os mundos virtuais: partir em vantagem para a próxima transição tecnológica”, que visa delinear as estratégias europeias para o Web 4.0 e os mundos virtuais.

Foram ainda divulgados dois documentos complementares de trabalho (parte um[2] e parte dois[3]) e um relatório[4] que, em conjunto, constituem cerca de 300 páginas e oferecem uma abrangente visão geral deste fenómeno que resulta de consultas de partes interessadas, tendências de mercado, oportunidades industriais, transformações tecnológicas e regulações.

Em síntese, a dita comunicação e a respetiva documentação complementar explica que o desenvolvimento da conectividade entre tecnologias associadas ao Web 4.0 comporta uma transformadora transição para a sociedade. Segundo a visão da União Europeia, os mundos virtuais desempenham um papel crucial nesta transição, pois oferecem oportunidades tanto a nível social, industrial, como público.

Perante o rápido progresso tecnológico e a melhoria da conectividade, pretende-se que os mundos virtuais moldem a Década Digital da Europa[5] (até 2030), ou seja, pretende-se transformar a forma como as pessoas vivem, trabalham, criam, partilham e, até, como as empresas inovam, operam e interagem com os seus clientes e parceiros de negócio.

Como é natural, uma transformação desta dimensão e amplitude implica múltiplos benefícios, mas também sérios e preocupantes riscos.

Entre os principais benefícos associados aos mundos virtuais, são destacadas as significativas oportunidades socias como, por exemplo, um eficiente serviço de saúde, uma educação envolvente e à distância ou, mesmo, interações colaborativas e experiências culturais imersivas.

São ainda destacadas as oportunidades a nível de serviços públicos, nomeadamente em termos de seviços de administração personalizados, assistência à distância (em zonas remotas e rurais), e de desenvolvimento do planeamento territorial e da vida comunitária.

Com vista a explorar estas oportunidades, além do investimento em projetos relacionados com gémeos digitais como, por exemplo, o Destino Terra (DestinE)[6], os Polos Europeus de Inovação Digital (PEDI)[7], a plataforma europeia «Digital Twin Ocean»[8], a Infraestrutura Europeia de Cadeia de Blocos no Setor dos Serviços[9] e o gémeo digital da rede elétrica europeia[10], a União Europeia irá ainda apoiar o projeto CitiVerse europeu[11] para complementar as aplicações-piloto que serão lançadas no âmbito do programa Horizonte Europa[12], um programa-quadro de investigação e inovação com o desígnio de reforçar a “base científica e tecnológica” no espaço europeu, nomeadamente mediante o “desenvolvimento de soluções para materializar prioridades políticas, como as transições ecológica e digital”.

Pretende-se ainda que o Espaço Comum Europeu de Dados para o Património Cultural[13] e a Nuvem Colaborativa Europeia para o Património Cultural[14] procurem salvaguardar os tesouros culturais através da digitalização e que seja criado o Consórcio para uma Infraestrutura Digital Europeia (EDIC)[15] que procurem acelerar e simplificar a criação e a execução de projetos de colaboração entre múltiplos países. Com o apoio da Comissão e a contribuição do Espaço Europeu de Dados de Saúde[16], deve ainda ser desenvolvido o gémeo humano virtual europeu, que irá reproduzir digitalmente o corpo humano para efeito de investigação científica.

No sector privado, segundo a comunicação da Comissão, hoje em dia, os mundos virtuais e as interfaces avançadas já oferecem interações entre humanos e máquinas rápidas, seguras e eficientes.

A título de exemplo, o setor automóvel[17] já utiliza ambientes virtuais para o design de produtos, testes e otimização de processos. Segundo os dados recolhidos pela União Europeia, diariamente surgem novas aplicações industriais que impulsionam as previsões de crescimento do mercado. Ainda segundo esses dados, prevê-se que o mercado global de mundos virtuais aumente de cerca de 27 mil milhões de euros em 2022 para mais de 800 mil milhões de euros até 2030. Específicos setores como, por exemplo, o sector automóvel, podem crescer de cerca de 1,9 mil milhões de euros em 2022 para mais de 16,5 mil milhões de euros até 2030.

Tecnologias de realidade digital como a realidade virtual (VR), realidade aumentada (AR), realidade estendida (XR) e a realidade mista (MR) apresentam um papel vital neste potencial crescimento, prevendo a União Europeia a criação de cerca de 860.000 novos empregos europeus relacionados com estas tecnologias até 2025.

Para isso acontecer, a Comissão Europeia reconhece que a aceitação dos utilizadores dos mundos virtuais e da Web 4.0 é um aspeto chave e irá resultar da sensibilização, informação confiável e competências digitais, especialmente para aqueles com habilidades digitais limitadas.

Como tal, a literacia tecnológica, o desenvolvimento de competências e o acréscimo de acessibilidade afiguram-se essenciais para o crescimento pretendido. Em concreto, criar um conjunto de especialistas qualificados em mundos virtuais afigura-se uma prioridade para a União Europeia. O investimento através de programas de financiamento visa igualmente promover futuros especialistas em TIC, bem como criadores de conteúdo para mundos virtuais “hiper-realistas”.

A Comissão reconhece ainda as PMEs e as startups como as principais impulsionadoras da inovação. Nesse sentido, entende que a União Europeia se destaca em middleware, software e criatividade e, por isso, o investimento em tecnologias de realidade digital (entre outras como, por exemplo, digital twins, IoT, blockchain, etc.) é identificado como crítico para a Plataforma deTecnologias Estratégicas para a Europa (Strategic Technologies for Europe Platform – STEP[18]).

Com vista a dinamizar o sector industrial, além de um pacote de alívio às PMEs que irá abranger as necessidades das PMEs e das startups, a Comissão tem ainda como objetivo melhorar a colaboração entre os hubs de mundos virtuais e trabalhar em estreita colaboração com a plataforma VR/AR Industrial Coalition[19]. Os Polos Europeus de Inovação Digital e a Rede Europeia de Empresas[20] também irão contribuir. O Creative Europe[21], o MediaInvest[22], os fundos de coesão[23], o InvestEU[24] e o Acelerador do Conselho Europeu de Inovação[25] irão financiar os criadores e modelos de negócios inovadores igualmente com vista a contribuir para a transição tecnológica para a Web 4.0 e mundos virtuais.

Nexte contexto, a Declaração sobre Padrões da UE para Nações Startup[26] deverá delineiar as melhores práticas para incentivar um ambiente favorável às startups e a Aliança das Nações Startup da UE[27] deverá procurar implementá-las a nível nacional.  

Sucede que, para além dos múltiplos benefícios e de todas as oportunidades, esta transformação implica também elevados e sérios riscos, embora estes não sejam tão enfatizados e explorados como deviam ou, pelo menos, merecem.

Entre os principais riscos associados aos mundos virtuais, são identificados determinados aspetos que parecem colocar em causa os direitos fundamentais e os interesses públicos, nomeadamente o bem-estar físico e mental das pessoas, os direitos das crianças, a privacidade de dados, a desinformação, a cibercriminalidade, a discriminação, entre outros.

Segundo consta da comunicação da Comissão Europeia, com vista a mitigar os riscos associados a estes aspetos, o Centro Europeu para a Transparência Algorítmica (ECAT)[28] e o Observatório e Fórum da cadeia de blocos da UE[29] irão contribuir para a monitorização, a identificação de oportunidades de crescimento, a compreensão de práticas emergentes e abordar desafios relacionados com ética, bem-estar social, direitos e proteção do consumidor.

A Comissão irá inclusive apoiar a pesquisa[30] sobre aquele que parece ser um dos principais impactos dos mundos virtuais, ou seja, o impacto no bem-estar físico e mental das pessoas.

Ainda assim, tudo indica que, depois do severo impacto causado pelo surgimento dos smartphones e das redes sociais[31], as pessoas serão continuadamente sujeitas à utilização de tecnologias que tendem a prejudicar o seu bem-estar físico e mental e, isto, em ao prol de um “maior conforto”, de “experiências imersivas” ou de uma maior “eficiência”.

De que serve ao homem um “maior conforto”, usufruir de “experiências imersivas” ou de uma maior “eficiência” se, para o efeito, é necessário sacrificar a sua saúde física e mental, a sua privacidade e, porventura, a sua própria liberdade?

Esta questão vale tanto para a implementação de mundos virtuais, como para a implementação de quaisquer outras novas tecnologias como, por exemplo, as pouco consensuais moedas digitais de bancos centrais (no nosso caso, o euro digital[32]). Até porque, em geral e, no mínimo, de forma indireta, todas estas tecnologias encontram-se interligadas e, futuramente, até interconectadas.

Ainda que a transformação tecnológica seja inevitável, isso não significa que devemos sacrificar os nossos direitos fundamentais nem, muito menos, o nosso bem-estar físico e mental. Devemos sim, buscar soluções que permitam aproveitar ao máximo as oportunidades que essa transformação oferece, ao mesmo tempo em que garantem a proteção dos nossos direitos e a promoção de um ambiente digital e artificial verdadeiramente seguro.

A revolução tecnológica deve ser guiada por princípios que respeitem a dignidade do ser humano, ao invés de ser impingida por interesses financeiros e empresariais ou agendas políticas.

O futuro dos mundos virtuais encontra-se, assim, repleto de complexos desafios. A forma como enfrentamos esses desafios no dia de hoje irá definir a próxima era digital e articial e, com isso, moldar o mundo digital (e real) que deixaremos para as nossas gerações futuras.


[1] Acessível em: https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/?uri=CELEX%3A52023DC0442

[2] Acessível em: https://eur-lex.europa.eu/legal-content/FR/TXT/?uri=CELEX:52023SC0250

[3] Acessível em: https://eur-lex.europa.eu/legal-content/EN/ALL/?uri=SWD:2023:250:FIN

[4] Acessível em: https://publications.jrc.ec.europa.eu/repository/handle/JRC133757

[5] Vide: https://commission.europa.eu/strategy-and-policy/priorities-2019-2024/europe-fit-digital-age/europes-digital-decade-digital-targets-2030_pt

[6] Vide: https://digital-strategy.ec.europa.eu/en/policies/destination-earth

[7] Vide: https://digital-strategy.ec.europa.eu/pt/activities/edihs

[8] Vide: https://research-and-innovation.ec.europa.eu/funding/funding-opportunities/funding-programmes-and-open-calls/horizon-europe/eu-missions-horizon-europe/restore-our-ocean-and-waters/european-digital-twin-ocean-european-dto_pt

[9] Vide: https://digital-strategy.ec.europa.eu/pt/policies/european-blockchain-services-infrastructure

[10] Vide: https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/?uri=CELEX%3A52022DC0552

[11] Vide: https://digital-strategy.ec.europa.eu/en/events/info-day-developing-citiverse

[12] Vide: https://www.consilium.europa.eu/pt/policies/horizon-europe/

[13] Vide: https://portugal.representation.ec.europa.eu/news/comissao-propoe-espaco-comum-europeu-de-dados-para-o-patrimonio-cultural-2021-11-10_pt

[14] Vide: https://op.europa.eu/pt/publication-detail/-/publication/257920c2-191b-11ed-8fa0-01aa75ed71a1/language-en

[15] Vide: https://publications.europa.eu/resource/cellar/ce89b230-c496-4bba-acbc-fd74674e9e9b.0013.03/DOC_1

[16] Vide: https://health.ec.europa.eu/ehealth-digital-health-and-care/european-health-data-space_pt

[17] Vide o artigo de blog “Driving the Metaverse: All The Ways Automotive Companies Are Using XR” datado de 23 de março de 2023 e publicado no site da BrainXChange, acessível em: https://www.brainxchange.com/blog/driving-in-the-metaverse-all-the-ways-auto-companies-are-using-xr

[18] Vide: https://commission.europa.eu/strategy-and-policy/eu-budget/strategic-technologies-europe-platform_en

[19] Vide: https://digital-strategy.ec.europa.eu/en/policies/virtual-and-augmented-reality-coalition

[20] Vide: https://osha.europa.eu/pt/enterprise-europe-network

[21] Vide: https://culture.ec.europa.eu/creative-europe

[22] Vide: https://digital-strategy.ec.europa.eu/pt/policies/mediainvest

[23] Vide: https://www.europarl.europa.eu/factsheets/pt/sheet/96/fundo-de-coesao

[24] Vide: https://investeu.europa.eu/index_en

[25] Vide: https://eic.ec.europa.eu/eic-funding-opportunities/eic-accelerator_en

[26] Vide: https://startupnationsstandard.eu/

[27] Vide: https://digital-strategy.ec.europa.eu/pt/news/eu-startup-nations-alliance-expands-15-member-countries

[28] Vide: https://digital-strategy.ec.europa.eu/pt/news/dsa-enforcement-commission-launches-european-centre-algorithmic-transparency

[29] Vide: https://digital-strategy.ec.europa.eu/pt/policies/eu-blockchain-observatory-and-forum

[30] Vide: https://health.ec.europa.eu/system/files/2023-06/com_2023_298_1_act_en.pdf

[31] Vide a notícia “Effects of smartphones and social media on children ‘needs urgent research’” datada de 7 de junho de 2023 e publicada pelo WalesOnline, acessível em: https://www.walesonline.co.uk/news/uk-news/effects-smartphones-social-media-children-27076249

[32] Vide: https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/?uri=CELEX%3A52023PC0369