Raquel Cardoso

Licenciada em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade do Porto.
Mestre e Doutora pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, em Ciências Jurídico-Criminais.
Pós-graduada em Direito Penal Económico e Europeu, pelo Instituto de Direito Penal Económico e Europeu, da Universidade de Coimbra.
Professora Auxiliar de Direito Penal e Direito Processual Penal na Faculdade de Direito da Universidade Lusíada – Porto.
Investigadora integrada do Centro de Estudos Jurídicos Económicos e Ambientais (CEJEA), da Universidade Lusíada, e membro da European Criminal Law Academic Network (ECLAN).


As Funções do Direito Penal Europeu e a Legitimidade da Criminalização: Entre o Harm Principle e a Protecção de Bens Jurídicos é a recente obra de sua autoria. Obra publicada pelo Grupo Almedina e disponível no mercado desde 10 de Agosto de 2023.

Consulte a obra neste link.


A assunção de tarefas penais por parte de entidades que não são Estados não é algo evidente ou com longa tradição: enquanto expressão máxima do poder de uma entidade política sobre os indivíduos, o Direito Penal partilha uma ligação inelidível com a soberania estadual e representa um reduto último e intocável da mesma. Esta visão tradicional tem vindo a ser posta em causa pela necessidade de se atribuírem pelo menos certas competências penais a entidades supranacionais ou internacionais – façam essas competências parte do poder de legislar, de julgar ou de fazer cumprir as sentenças em matéria penal.

No espaço europeu, um dos intervenientes na definição do que gera a responsabilidade criminal dos indivíduos é agora a União Europeia; mas dada a relativa novidade dessas competências e o difícil consenso transnacional nestas matérias, à sua legislação tem sido apontado o carácter reactivo, focado em aspectos eminentemente práticos do Direito Penal, ao invés da ponderação normativa que este ramo do Direito exige. Em especial, tem sido criticado o facto de a União não apresentar uma política criminal coerente ou sequer discernível.

Na verdade, a necessidade de definição de uma política criminal europeia é algo cada vez mais evidente, à medida que a UE assume mais competências nessa área – e portanto, a questão impõe-se: o que se pretende afinal alcançar com a adopção de normas penais europeias? É, ou deve ser, algo igual ou diferente da função dessas normas de âmbito nacional? Será que tem sequer de existir essa orientação fundamental para o legislador, ou deve antes constatar-se apenas uma total liberdade do mesmo em relação ao conteúdo da norma penal?

            Os desafios que se colocam ao legislador penal europeu são ainda maiores do que aqueles enfrentados pelo homólogo nacional, uma vez que as normas adoptadas aplicar-se-ão a uma multiplicidade de Estados e povos, e não apenas a um – daí resulta igualmente uma acrescida responsabilidade em relação à legitimidade das mesmas, não só formal, mas também material.

Esta questão foi sendo, no âmbito da UE, maioritariamente evitada até que a necessidade de existência de uma política criminal se tornou por demais evidente, eventualmente despoletando uma manifestação por parte das instituições da União[1]. Em cada um desses documentos é possível discernir, com variáveis graus de clareza, os princípios penais essenciais a que pretendem referir-se: a Comissão coloca a tónica no princípio da ultima ratio e, em segunda linha, da proporcionalidade; o Conselho, apesar de também sublinhar a relevância do princípio da ultima ratio, afirma que as condutas criminalizadas devem causar dano ou ameaçar direitos ou interesses objecto de protecção, numa clara alusão a um princípio de feição mais valorativa; e por fim o Parlamento segue essa tendência do Conselho, ainda que acentue mais marcadamente a causação de dano, seja à sociedade, indivíduo ou grupo de indivíduos.

            Como se pode observar, há uma referência despreocupadamente indiferenciada a critérios de legitimidade da lei penal e de necessidade de existência da mesma, efectivamente sobrepondo ou assemelhando o conteúdo de ambos os conceitos.

            A legitimidade, que corresponde à convicção normativa de um sujeito de que uma certa instituição ou norma deve ser obedecida[2], apresenta, na verdade, várias vertentes (ou dimensões), que se podem dividir, no essencial, em quatro categorias: temos, por um lado, a legitimidade formal e material; e por outro, a legitimidade pelo contributo (input) e pelo resultado (output). Iniciando por esta última distinção – numa espécie de aferição da legitimidade a priori e a posteriori – aquela primeira vertente diz respeito à questão de todos os interessados terem a oportunidade de expressar a sua opinião e de participarem no processo decisório (o que, no nosso caso, se pode identificar com a existência de um processo verdadeiramente democrático no âmbito da adopção de medidas penais europeias[3]); e a segunda refere-se à legitimidade atribuída às medidas adoptadas pelos resultados que estas obtêm, pela sua eficácia para atingir os objectivos que se propõem[4].

            Já o binómio relativo à legitimidade formal e material terá como ponto de referência a elaboração da lei e o seu conteúdo: por um lado, quanto à vertente formal, são abordadas questões de emanação da lei penal e do procedimento para isso definido – no âmbito da UE, a legitimidade formal para legislar em questões penais foi durante muito tempo contestada[5], e avaliada em relação ao défice democrático europeu que expunha e à falta de competência expressa para a emissão de normas com conteúdo penal por parte da União. Com o Tratado de Lisboa as maiores dificuldades foram efectivamente ultrapassadas, apesar de existirem agora desafios complexos quanto aos limites dessa competência.  Por outro lado, a legitimidade material diz respeito ao efectivo conteúdo das normas penais: uma norma pode ser formalmente legítima se seguir de modo correcto todo o procedimento previsto para a sua emanação, mas, no entanto, ser materialmente ilegítima, se previr a adopção ou proibição de um comportamento com o qual os sujeitos que deverão obedecer a essa norma não concordam[6]. Esta legitimidade material, de acordo com o pensamento de todos quanto procuram estabelecer verdadeiros limites à actividade legislativa, deve ser avaliada em relação a um certo conteúdo axiológico para que possa funcionar como critério normativo de avaliação da norma penal.

            Já o conceito de necessidade impõe considerações diferentes. Na verdade – já o diz Jorge de Figueiredo Dias – a mera identificação de um bem jurídico-penal (de um interesse) e da sua violação não será suficiente para despoletar a intervenção do Direito Penal, “antes se requerendo que esta seja absolutamente indispensável à livre realização da personalidade de cada um na comunidade. Nesta precisa acepção o direito penal constitui, na verdade, a ultima ratio da política social e a sua intervenção é de natureza definitivamente subsidiária.”[7] A necessidade de intervenção penal liga-se assim à insuficiência de outros modos de protecção do interesse fundamental em causa, fazendo intervir o Direito Penal quando se constate que para uma adequada protecção do mesmo são inadequados outros meios de controlo social.

            Para uma total legitimidade da normal penal – europeia ou não – ambas as vertentes deverão ser averiguadas: o seu conteúdo, que deve ser legítimo, e o recurso aos meios especificamente penais deve ser ainda necessário. A função que se atribua ao Direito Penal (Europeu) pretende, deste modo, conferir legitimidade material às normas penais, confrontando o seu conteúdo com o objectivo que devem perseguir.

            No âmbito do espaço europeu – lato sensu – são identificáveis dois princípios especialmente úteis e especificamente voltados para a avaliação material do conteúdo da normal penal: o princípio da exclusiva protecção de bens jurídicos, presente sobretudo nos ordenamentos jurídicos que sentem a influência germânica; e o harm principle, de origem anglo-americana. Ambos, ainda que com diferentes pontos de enfoque principal, pretendem distinguir o Direito Penal legítimo do ilegítimo com referência ao conteúdo da norma, através da identificação de um interesse que sirva de base àquela proibição penal. E ainda que a ambos sejam dirigidas múltiplas críticas – a ponto de se falar recorrentemente na crise destes princípios[8] –, a verdade é que o facto de ainda não ter sido encontrado um outro critério que, de modo satisfatório, cumpra as suas funções, mostra a sua indispensabilidade. Esta é verdadeiramente uma questão crucial no Direito Penal, já centenária, e que não irá encontrar solução alternativa a menos que simplesmente se demita este ramo do Direito do seu ensejo de ter um conteúdo legítimo, admitindo afinal a ilimitada liberdade do legislador. Essa experiência – aliás, historicamente comprovada – não deve ser repetida.

            Torna-se, deste modo, necessário que exista um critério substantivo que se dirija à avaliação do conteúdo das normas europeias, para obviar a normas de comportamento problemáticas que tão facilmente surgem quando não existem princípios orientadores da actividade legislativa[9] (existem vários exemplos, p. ex. quanto ao terrorismo, pornografia infantil ou contrabando de migrantes[10]), e que paulatinamente vão modificando as características fundamentais do nosso sistema de Direito Penal[11].

É por isso que ao longo do estudo da nossa autoria que será em breve publicado pela Almedina[12] será explorada a questão da função do Direito Penal Europeu, iniciando-se por uma primeira parte onde se analisam princípios gerais através dos quais se aferir a legitimidade material do Direito Penal; passando por uma segunda parte onde se aplicam esses conceitos e requisitos ao ambiente jurídico próprio da União Europeia, e onde ultimamente se opta por uma solução para a problemática em questão; e terminando, enfim, na terceira parte, por uma aplicação prática do funcionamento do critério proposto no final da anterior. Tudo na tentativa de tornar a lei penal – que hoje depende também em grande medida das decisões adoptadas no plano europeu – mais coerente e mais legítima, tanto para os Estados-Membros como para a própria União Europeia: uma União, afinal, de valores.


[1] COM(2011) 573 final – Communication from the Commission to the European Parliament, the Council, the European Economic and Social Committee and the Committee of the Regions – Towards an EU Criminal Policy: Ensuring the effective implementation of EU policies through criminal law (20.09.2011); Council Conclusions on model provisions, guiding the Council’s criminal law deliberations, de 27 de Novembro de 2009; European Parliament resolution of 22 May 2012 on an EU approach to criminal law (2010/2310(INI)).

[2] Klabbers, Jan, “Setting the Scene”, in Klabbers, Jan; Peters, Anne e Ulfstein, Geir (Eds.), The Constitutionalization of International Law, Oxford, Oxford University Press, 2011, pág. 37 ss.

[3] A legitimidade pelo contributo pressupõe ainda a existência de uma base social coesa – Klabbers, Jan, (n. 2), pág. 40. Esta questão assume particular relevância no Direito Penal Europeu, uma vez que é ainda discutida a existência de uma real comunidade europeia, no sentido de pertença e de partilha de valores comuns a todos os Estados-Membros que faça com que a UE tenha um demos capaz de conferir legitimidade democrática às medidas penais. Esta questão pode também ser relacionada com o princípio da subsidiariedade (e a possibilidade de participação dos vários Parlamentos nacionais, prevista no Protocolo relativo ao papel dos Parlamentos nacionais na União Europeia, anexo ao Tratado de Lisboa), dirimindo deste modo as maiores críticas neste sentido.

[4] Também este é um aspecto caro ao Direito da União em geral, como se pode observar, por exemplo, pelos vários mecanismos à disposição da UE para avaliar o impacto da sua legislação e valor acrescentado da mesma, tanto ex ante como ex post – v. p. ex. European Parliamentary Research Service, “Impact Assessment and European Added Value”.

[5] É uma questão que hoje (após a entrada em vigor do Tratado de Lisboa) perdeu muita da sua relevância, apesar de ainda ser mencionada – Mylonopoulos, Christos, “Strafrechtsdogmatik in Europa nach dem Vertrag von Lissabon – Zur materiellen Legitimation des Europäisches Strafrechts”, in Zeitschrift für die gesamte Strafrechtswissenschaft, Vol. 123, Heft 3, 2011, pág. 636.

[6] Por exemplo, se previr um conteúdo “odioso” ou “algo substantivamente injustificável” – Klabbers, Jan (n. 2), pág. 39.

[7] Figueiredo Dias, Jorge de, Direito Penal. Parte Geral, 3ª Edição, Coimbra: Gestlegal, 2019, p. 147.

[8] Dando conta dessa crise em relação ao bem jurídico, p. ex., Figueiredo Dias, Jorge de (n. 7), pág. 153 ss. Quanto ao harm principle, p. ex., Harcourt, Bernard E., “The Collapse of the Harm Principle”, in The Journal of Criminal Law & Criminology, Vol. 90, No. 1, 1999, pág. 182.

[9] Que se deve ancorar, aliás, na responsabilidade de uma entidade pela protecção de uma comunidade – assim Caeiro, Pedro, “The relationship between European and international criminal law (and the absent(?) third)”, in Mitsilegas, Valsamis, Bergström, Maria and Konstadinides, Theodore (Eds.), Research Handbook on EU Criminal Law, Cheltenham, Edward Elgar Publishing, 2016, pág. 587; esclarecendo, Caeiro, Pedro, “Beyond Competence Issues: why and how should the EU legislate on criminal sanctions?”, in Kert, Robert e Lehner, Andrea (Hrsg.), Vielfalt des Strafrechts im internationalen Kontext. Festschrift für Frank Höpfel zum 65. Geburtstag, Wien, Neuer Wissenschaftlicher Verlag, 2018, pág. 648.

[10] Respectivamente, Directiva 2017/541/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15 de março de 2017, relativa à luta contra o terrorismo; Directiva 2011/93/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de Dezembro de 2011, relativa à luta contra o abuso sexual e a exploração sexual de crianças e a pornografia infantil; Decisão-quadro do Conselho, de 28 de Novembro de 2002, relativa ao reforço do quadro penal para a prevenção do auxílio à entrada, ao trânsito e à residência irregulares, e Directiva 2002/90/EC do Conselho, de 28 de Novembro de 2002, relativa à definição do auxílio à entrada, ao trânsito e à residência irregulares.

[11] Dando conta de uma viragem com tendências preventivas no âmbito do Direito Penal Europeu, Mitsilegas, Valsamis, EU Criminal Law, 2ª Edição, London, Hart Publishing, 2022 (vários pontos ao longo da obra); assim como, exemplificando (mais recentemente), Mitsilegas, Valsamis, “The criminalisation of travel as a global paradigm of preventive (In)justice: Lessons from the EU response to ‘foreign terrorist fighters’”, in New Journal of European Criminal Law, 2023 (DOI: 10.1177/20322844231171499).

[12] Intitulado As Funções do Direito Penal Europeu e a legitimidade da criminalização: Entre o harm principle e a protecção de bens jurídicos.