David Dominguez Ramos

Advogado Associado da Cuatrecasas, Gonçalves Pereira & Associados.

Mestre em Direito Internacional e Europeu pela Universidade Católica Portuguesa – Porto.


Não cessa de ecoar, desde o dia 24 de fevereiro de 2022, o Requiem ao Direito Internacional. Verdade seja dita, sempre que as balas triunfam sobre as palavras, os acordes vibram em compasso acelerado – do crónico andante ao (mais recente) vivace.

É cedo, naturalmente, para epitáfios jurídicos; as hostilidades eclodiram há pouco mais de um ano e, até ver, não desembocaram no terceiro conflito mundial. Convém, no entanto, não menosprezar a magnitude das circunstâncias: a agressão armada perpetrada pela Rússia consubstancia uma gravíssima violação do sistema jurídico-internacional.

Conforme reza o célebre artigo 2.º, n.º 4, da Carta das Nações Unidas, “Os membros deverão abster-se nas suas relações internacionais de recorrer à ameaça ou ao uso da força, quer seja contra a integridade territorial ou a independência política de um Estado, quer seja de qualquer outro modo incompatível com os objetivos das Nações Unidas”. Tal cânone constitui, verdadeiramente, um dos princípios estruturais do Direito Internacional contemporâneo, culminando o desfecho de um paulatino percurso evolutivo – moral, jurídico e social – trilhado pela Comunidade Internacional ao longo de largas dezenas de anos.

Perante a realidade – e a crueza – dos factos, arredando contorcionismos interpretativos, urge constatar o óbvio: o conflito iniciado pela Federação Russa representa um duro golpe ao princípio fundamental da proibição do uso da força. Hoje, volvido mais de um ano de guerra, a interrogação que se impõe é elementar: terá sido tal golpe fatal? Melhor dizendo: terá o Kremlin, pelo punho de Vladimir Putin, assinado a certidão de óbito da “pedra angular” da Carta das Nações Unidas?

Perscrutemos, pois, os indícios do eventual crime.

Principiando pela reacção da Comunidade Internacional, a invasão russa parece ter merecido reprovação generalizada. Primeiro, logo em 2 de Março de 2022, a Assembleia Geral das Nações Unidas adoptou – em sessão extraordinária e com um número muitíssimo expressivo de Estados a pronunciar-se favoravelmente – uma resolução que condenou a invasão da Ucrânia em termos invulgarmente peremptórios. Quase um ano depois, em 23 de fevereiro de 2023, a Assembleia Geral tornou a condenar a invasão russa em termos não menos contundentes (com o voto favorável de igual número de Estados). Por sua vez, o Secretário-Geral António Guterres – que desempenhou, a par da Turquia, um papel fundamental na celebração (e renovação) do acordo de exportação de cereais, agora suspenso -, tem sido lapidar na condenação da guerra. Veja-se, a título ilustrativo, o discurso proferido nessa (segunda) sessão extraordinária da Assembleia Geral, onde qualificou a invasão russa como uma “afronta à consciência coletiva”, constitutiva de “uma violação da Carta das Nações Unidas e do Direito Internacional”. De mais a mais, não será despiciendo assinalar a expulsão da Federação Russa do Conselho da Europa, por decisão tomada em 16 de Março de 2022 pelo Comité de Ministros, na qual se condenou o acto de agressão russo.

Segundo, o Tribunal Internacional de Justiça, apesar das suas (re)conhecidas debilidades, prolatou, em 16 de Março de 2022, no caso Ucrânia v. Rússia, um despacho de medidas provisórias. Nesse âmbito, determinou, entre outras injunções, que a Federação Russa i) suspendesse imediatamente as operações militares iniciadas em 24 de fevereiro de 2022 em território ucraniano e ii) garantisse que quaisquer unidades militares regulares ou irregulares que sejam por si dirigidas ou apoiadas, assim como quaisquer organizações e pessoas que possam estar sujeitas ao seu controlo e direcção, evitem a adopção de medidas que promovam a prossecução das operações militares. Embora circunscrito ao quadro temático do genocídio – partindo, em especial, da sua (alegada) consumação, nas regiões de Luhansk e Donetsk, pela Ucrânia –, o Tribunal considerou que a Convenção do Genocídio (muito) dificilmente autorizaria o uso unilateral da força para prevenir ou punir o genocídio. Assim, também em Haia se evidenciou a falta de adesão da actuação russa ao património jurídico internacional.

Terceiro, na esfera ocidental, dois pontos assumem particular relevância. Por um lado, a aprovação de sucessivos pacotes de sanções – ou, em abono do rigor jurídico, de contramedidas -, tendentes a compelir o infractor a repor a legalidade, demonstra bem a firmeza da posição da União Europeia (e da NATO) perante o ilícito. Por outro, a assistência económico-militar fornecida à Ucrânia, que semana após semana se vai adensado – sobretudo do ponto vista da tecnologia bélica –, revela a inalienidade dessa posição: o futuro da Ucrânia confunde-se, inevitavelmente, com o futuro desta ordem internacional. Do recente (e histórico) acordo comunitário para a compra conjunta de munições ao aumento astronómico dos orçamentos de defesa (com a Alemanha à cabeça), passando, ainda, pela adesão da Finlândia à NATO (com a Suécia a caminho), os muros da contenção vão-se erigindo (cada vez) mais alto ao redor do ilícito russo.

Debrucemo-nos, agora, sobre as trincheiras jurídicas do infractor.

Na proclamação inicial da tese que (aparentemente) legitima(va) a agressão, a Federação Russa apontou para a principal excepção ao princípio proibitivo do uso da força, expressamente instituída no (igualmente célebre) artigo 51.º da Carta: a legítima defesa. Trata-se, em suma, do direito inerente – isto é, incindivelmente ligado ao conceito de soberania – de um Estado (re)agir, através da força, perante um ataque armado efetivo (ou, para alguns, iminente).

Note-se, aliás, que a Rússia (até) cumpriu as formalidades impostas pelo referido preceito, informando o Conselho de Segurança das Nações Unidas sobre o início da “operação militar especial”. A asserção resulta, por isso, incontornável: sem prejuízo da reprovação generalizada pela (grande) maioria dos Estados, o Estado infractor procurou juridicizar a sua conduta, suportando o uso da força na norma exceptiva – reforçando, desse modo, a regra geral proibitiva. Por outras palavras: não obstante a flagrante violação do artigo 2.º, n.º 4, da Carta, o invasor não deixou de cobrir a sua conduta com a veste lexical da legalidade.

Sobre o insólito discurso justificativo de Vladimir Putin – transmitido ao Conselho de Segurança –, dois apontamentos breves. Primeiro, a extensão (e ambiguidade) do rol de pretextos invocados emerge inversamente proporcional à sua potencial procedência – da legítima defesa individual à legítima defesa colectiva, passando, por exemplo, pela prevenção do genocídio ou pela protecção de nacionais no estrangeiro, o certo é que a falta de fundamentação (e, sobretudo, de realidade) se espraia por todas as teses ali ensaiadas. Segundo, ainda que (por absurdo) se reconhecesse alguma razoabilidade jurídica à narrativa russa, a “operação militar especial” sempre violaria (pelo menos) um dos pressupostos essenciais da legítima defesa: a proporcionalidade. Obviando dispensáveis considerações teóricas, não há ameaça imaginável que justifique o rasto de destruição e sofrimento que se vai alastrando por toda a Ucrânia.
Finalmente, não podemos deixar de apontar a bússola para Oriente: o xadrez político (e jurídico) da guerra disputa-se também, necessariamente, no tabuleiro chinês.

No primeiro aniversário da invasão, a China apresentou o seu (imensamente aguardado) plano para a paz. Abandonando a penumbra diplomática – para se ser a maior potência mundial é preciso agir-se como tal –, divulgou, então, uma carta com doze pontos indicativos da sua posição em face da crise ucraniana. Para lá de vacuidades e pregões anódinos – não se desvenda, na verdade, uma única proposta concreta para a resolução do conflito –, ali si extrai, porém, um sinal jurídico relativamente expressivo sobre o uso da força.

Com efeito, o ponto que inaugura o programa da paz reporta-se, justamente, ao respeito pela soberania dos Estados. Em termos mais precisos, defende (e rememora) a China, a esse propósito, que “[o] direito internacional universalmente reconhecido, incluindo os objectivos e princípios da Carta das Nações Unidas, deve ser estritamente observado. A soberania, independência e integridade territorial de todos os países deve ser efectivamente respeitada.” Ocorrerá ao leitor, porventura, algum princípio de Direito Internacional, quiçá fundamental, que vise preservar a soberania e a integridade territorial dos Estados? Perguntar-se-á, com razão, nesse seguimento: se assim é, porque não condenou a China a invasão? Por outras palavras: que consequências retira, afinal, de tal proposição?

Evitando politizar um discurso que se pretende jurídico, conceda-se, tão só, que o tabuleiro chinês padece de (significativa) inclinação soviética – o segundo ponto do plano de paz ressalva, desde logo, que “[a] segurança de uma região não deve ser alcançada através do reforço ou da expansão de blocos militares” -, e, sobretudo, que a resolução da questão de Taiwan reclama especiais cautelas discursivas. Resumindo, e reformulando o ditado – será chinês? -, olha para o que eu digo, não olhes para o que eu (não) faço…

Seja como for, a China assume hoje um papel imprescindível na resolução do conflito – bem se vê o merecimento (por vezes imoderado) que a Ucrânia lhe atribui e o périplo de líderes europeus (e governantes russos) no beija-mão a Xi Jinping -, contudo, persiste ambígua a sua verdadeira configuração: pacificadora ou provedora bélica da Federação Russa?
Aqui chegados, sopesando os indícios enunciados, a resposta à indagação inicial parece subsistir antiga: as notícias sobre a morte do artigo 2.º, n.º 4 são (uma vez mais) manifestamente exageradas [1] .

É certo que a norma não impediu a invasão, porém, daí partir para afiançar a sua total ineficácia ou inutilidade resulta despropositado – ou aceitar-se-á a mesma inferência, a propósito do artigo 131.º do Código Penal português, referente ao crime de homicídio, por cada acto consumado?

Perante a flagrante violação do princípio proibitivo do uso da força, a reacção da comunidade internacional não deixou de ser peremptória: por um lado, através da condenação política, jurídica e social do acto de agressão; por outro, através da aplicação de contramedidas e da assistência económico-militar à Ucrânia, estreitando posições que se imaginavam longíquas (sobretudo no Kremlin). Ao mesmo tempo, resulta indubitável o papel conformador da linguagem da referida disposição: pese embora a nitidez do ilícito, Vladimir Putin não deixou de amparar a sua conduta no idioma jurídico-internacional sobre o uso da força. Em suma, do agressor ao agredido, passando, ainda, pelos restantes atores estaduais envolvidos, o artigo 2.º, n.º 4 continua a ser o parâmetro universal para justificar ou censurar comportamentos bélicos – evitando assim, pelo menos, que o Direito Internacional se torne numa Torre de Babel.

Enfim, para terminar, regressemos ao começo. Aos arautos da ruína da “pedra angular” da Carta, que precipitadamente arpejam acordes fúnebres, apetece sugerir: allegro, ma non troppo.

[1] Para ver a “clássica” disputa doutrinal sobre a morte do artigo 2.º, n.º 4 da Carta, cfr. THOMAS FRANCK,‘Who Killed Article 2(4)? Or Changing Norms Governing the Use of Force by States’(1970) 64 American Journal of International Law 809 e LOUIS HENKIN,‘The Reports of the Death of Article 2(4) are Greatly Exaggerated’(1971) 65 AmericanJournal of International Law 544, 544.