Leonardo Castro de Bone

Doutorando em Ciências Jurídico-Civilísticas pela Universidade de Lisboa, com estágio de pesquisa na Ludwig-Maximilians-Universität München (2022/2023). Mestre em Direito e Ciências Jurídico-Civis pela Universidade de Lisboa. Especialista em Direito Tributário e Processo Tributário pela Faculdade de Direito de Vitória. Advogado.


O Direito a Procriar por Técnicas Laboratoriais de Reprodução é a recente obra de sua autoria. Obra publicada pelo Grupo Almedina e disponibilizada no mercado a 2 de Março de 2023.

Consulte a obra neste link.


A resposta, segundo cremos, será afirmativa. Em que pese certa doutrina hesitar nesse reconhecimento[1], o direito à reprodução, como assevera Vera Lúcia Raposo, pode processar-se quer por via do ato íntimo e carnal do sexo, quer por meio das técnicas de procriação medicamente assistida e compreende, nesse último, no direito de aceder às referidas técnicas e escolher aquela que lhe for mais conveniente[2]. Não muito diferente, Eleonora Lamm entende que este direito à reprodução deve ser interpretado “en el sentido de que una pareja o un individuo tiene derecho a reproducirse no sólo de forma natural, sino también mediante las nuevas tecnologías reproductivas[3]. John Robertson, a esse propósito, considera que “if the moral right to reproduce presumptively protects coital reproduction, then it should protect noncoital reproduction as well[4].

Guilherme de Oliveira, ao reconhecer um direito fundamental a procriar (o que extrai do direito a constituir família, consagrado no art. 36.º, n.º 1, da CRP), observa que a procriação assistida não era pensada no passado como um problema jurídico. Ainda assim, não é pelo fato de os comandos constitucionais não terem sido elaborados pensando num “direito a procriar por técnicas de PMA”, que se exclui sua possibilidade ou apequena seu valor. Trata-se, em boa verdade, de se conferir “aos indivíduos um direito à utilização dos meios cientificamente comprovados e aptos para a procriação (…) constitui faceta de um pretenso direito subjectivo ao que é tecnologicamente possível”[5]. Nesses termos, devemos recordar que os direitos fundamentais são direitos históricos e caberá à doutrina interpretar e atualizar os preceitos constitucionais ao nosso tempo[6].

Assim, segundo a doutrina de Carlos Pamplona Corte-Real, a qual se acolhe, “deve valer entre nós, e à face da nossa lei, um recorte conceptual alargado, do direito a procriar, abarcando a procriação artificial através de processos médicos aceites e juridicamente reconhecíveis”[7]. Devemos ter em considerando, em referência as ideias de Friedrich Engels, que a família, enquanto produto do sistema social e reflexo do estado de cultura desse sistema, “deve progredir na medida em que progrida a sociedade, que deve modificar-se na medida em que a sociedade se modifique; como sucedeu até agora”[8]. Nesse pensar, o direito não pode manter-se alheio à realidade e às transformações sociais.

Não se pense, contudo, que ao reconhecermos a existência de um direito a procriar por técnicas laboratoriais de reprodução, queremos, com isso, exigir um filho, de modo que implique uma contraprestação estatal em garantir um filho a toda pessoa que deseja ser pai ou mãe (numa espécie de obrigação de resultado, para usarmos uma linguagem civilística). Do mesmo modo que a sociedade não está vinculada a garantir saúde a qualquer moribundo, ou dar um marido ou uma esposa a quem está solteiro mas goza do direito fundamental de contrair casamento, a expressão “direito a ter um filho” mediante técnicas de PMA não se traduz, crua e objetivamente, num filho propriamente dito[9]. A afirmação referida só pode ter algum sentido quando se traduz num direito às condições que permitam ter um filho (na dimensão civilística de obrigação de meio)[10], o que passa pelas técnicas reprodutivas[11], até porque, como pontua Ovadia Ezra, possuir um direito inclui também ter todas as condições e meios necessários para capitalizar esse direito[12].

Deste modo, não é pelo fato de certo tratamento ter sido mal sucedido e não se alcançar um determinado resultado derivado do exercício desse direito (v.g., uma gravidez), que se pode dizer que esse direito a procriar por técnicas foi violado. Como dito, esse direito é um direito aos meios e não um direito ao resultado, porque o que se reivindica é o direito de não ser impedido de procriar, seja pelo próprio Estado ou por terceiros[13].

Em resumo, depois deste arrazoado bem significativo, parece-nos razoável afirmar que há um direito fundamental a procriar por técnicas laboratoriais de reprodução, que deriva, desde logo, do princípio da dignidade humana (art. 1.º, da CRP), do direito ao desenvolvimento da personalidade (art. 26.º, n.º 1, da CRP) e, de forma mais direta, do direito a constituir família (art. 36.º, n.º 1, da CRP)[14]. No que diz respeito ao direito à intimidade e reserva da vida privada e familiar (art. 26.º, n.º 1, da CRP), que serve de fundamento na reprodução com recurso ao ato íntimo e carnal do sexo, não parece comportar aqui o reconhecimento de um direito à reprodução, isto porque no âmbito das técnicas de PMA a reprodução está longe de ser considerada um processo íntimo e pessoal, pelo fato de envolver “uma panóplia de pessoas e sua posta em prática é deslocada do leito conjugal (ou não tanto) para a ribalta do hospital”[15]. Apesar dessa constatação, não se pode deixar de reconhecer a importância desse preceito no âmbito da PMA heteróloga, quando envolver a doação anônima de gametas[16].

Ainda, em particular, acrescentaríamos no âmbito da reprodução assistida a efetivação das condições que permitam a realização pessoal dos membros da família (art. 67.º, n.º 1, da CRP), porque parece-nos incontestável que às técnicas de PMA possam contribuir para a realização pessoal dos membros da família[17]. Em complemento, esse preceito pode ainda ser conjugado com o direito de se beneficiar do desenvolvimento científico e tecnológico (art. 27.º, n.º 1, da DUDH e art. 15.º, n.º 1, al. “b”, da PDESC), que apesar de não ser reconhecido expressamente na Constituição portuguesa, pode ser considerado como parte integrante do ordenamento jurídico (art. 8.º, da CRP). Trata-se, novamente, da “faceta de um pretenso direito subjectivo ao que é tecnologicamente possível”[18]. Dessa forma, o recurso à procriação assistida, como arremata Guilherme de Oliveira, “cabe no exercício constitucional de procriar; sem prejuízo dos limites que se estabelecerem para esse exercício, com base na proteção de outros valores conflituantes e com a mesma dignidade constitucional”[19]. Esses limites, aliás, mereceram uma análise à parte, na obra que será publicada pelo Grupo Almedina (“O Direito a Procriar por Técnicas Laboratoriais de Reprodução – Considerações e restrições legais


[1] Nesse sentido, MEULDERS-KLEIN, Marie-Therese, Le droit de l’enfant face au droit a l’enfant et les procreations medicalement assistées, Revue trimestrielle de droit civil, ano 87, n.º 4, 1988, p. 645-672, pp. 663 e ss., diferente do que conclui quanto à existência de um direito a procriar por métodos que diz “naturais”, hesita no mesmo reconhecimento face à reprodução com recurso a essas técnicas, por considerar que não estaríamos perante uma liberdade individual (o que se extrairia do art. 8.º, do CEDH), mas sim perante o exercício de uma atividade submetida às regras do direito médico. DEECH, Ruth, Losing Control? – Some Cases, In: Marie-Thérèse Meulders-Klein, Ruth Deech e Paul Vlaardingerbroek (edts.), Biomedicine, the Family and Human Rights, Kluwer Law International, The Hauge/ London/ NewYork, 2002, p. 581-598, pp. 593 e ss, ao contrário de Marie-Therese Meulders-Klein, sequer considera a reprodução humana como um direito, quanto mais aquela que ocorre com o auxílio das técnicas reprodutivas. Em Portugal, CANOTILHO, J.J. Gomes e MOREIRA, Vital, A Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. 1, 4.ª ed. rev., Coimbra Editora, Coimbra, 2007, p. 567, consideram problemático saber se o direito a ter filhos envolve um direito à inseminação artificial heteróloga ou à gestação de substituição, por exemplo. Por sua vez, ASCENSÃO, José de Oliveira, Procriação Assistida e Direito, In: Estudos em homenagem ao Professor Doutor Pedro Soares Martínez, vol. 1, Almedina, Coimbra, 1998, p. 645-676, p. 648, ao partir da hipótese de um casal impossibilitado de procriar por vias que considera “normais”, diz-nos que o recurso a vias artificiais pode revelar-se traumatizante, implicando num egoísmo injustificado. Para ele “mesmo não havendo proibição jurídica, não há um fundamento natural que torne legítimas estas práticas”.

[2] RAPOSO, Vera Lúcia, Direito à Imortalidade: o exercício de direitos reprodutivos mediante técnicas de reprodução assistida e o estatuto jurídico do embrião in vitro, Almedina, Coimbra, 2014, p. 157.

[3] LAMM, Eleonora, Gestación por sustitución. Ni maternidade subrogada. Ni alquiler de vientres, ed. em e-book, Universitat de Barcelona, Barcelona, 2013, p. 230.

[4] ROBERTSON, John, Children of Choice: Freedom and the New Reproductive Technologies, Princeton University Press, Princeton, 1994, p. 32.

[5] OLIVEIRA, Guilherme de, Aspectos jurídicos da procriação assistida, In: Temas de Direito da Medicina I, Coimbra Editora, Coimbra, 1999, p. 73-90, p. 06.

[6] Sobre essa dimensão dos direitos fundamentais, cfr. BOBBIO, Norberto, A Era dos Direitos, 13.ª reimpr., trad. de Carlos Nelson Coutinho, Editora Campus, Rio de Janeiro, 1992, p. 05 e PECES-BARBA, Gregorio, Curso de Derechos Fundamentales: teoria general, Universidad Carlos III de Madrid, Madrid, 1995, p. 146.

[7] CORTE-REAL, Carlos Pamplona, Os efeitos familiares e sucessórios da procriação medicamente assistida (P.M.A.), In: José de Oliveira Ascensão (coord.), Estudos de Direito da Bioética, Almedina, Coimbra, 2005, p. 93-112, pp. 101-102.

[8] ENGELS, Friedrich, A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado, 9.ª ed. em português, trad. Leandro Konder, Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1984, p. 91.

[9] OLIVEIRA, Guilherme de, Beneficiários da Procriação Medicamente Assistida, In: Temas de Direito da Medicina I, Coimbra Editora, Coimbra, 1999, p. 31-58, p. 33.

[10] OLIVEIRA, Guilherme de, Beneficiários da Procriação Medicamente Assistida…, p. 33. Também nesse sentido, cfr. RAPOSO, Vera Lúcia, Direito à Imortalidade…, p. 158 e D’ONORIO, Joël-Benoît, LEJEUNE, Jerôme et alli, La vie prénatale: biologie, morale et droit, Téqui, Paris, 1986, p. 47.

[11] RAPOSO, Vera Lúcia, Direito à Imortalidade…, p. 158.

[12] EZRA, Ovadia, The Withdrawal of Rights: Rights from a Different Perspective, Springer, Boston, 2002, p. 03. Segundo explica: “However, there is another way to evaluate rights, without a direct reference to interests. From this aspect of evaluation we have to decide whether we consider rights as ‘trumps’, in Dworkin’s terminology, and hence function as what Rawls defines as a ‘final court of appeal for ordering the conflicting claims of moral persons’. Such an attitude toward rights sometimes requires us not only to impose constraints on others, but also to take concrete actions to fulfill the rights. This concept of rights involves, at least, ‘some sort of normative direction on the behavior of others’, as Rex Martin carefully formulates this demand. Such an understanding of rights means that the acknowledgement of one’s claim as a right includes, inter alia, the assurance that the relevant respondent will carry out the requirements that are demanded by that right. Otherwise the fulfillment of the above right may be subject to the respondent’s good will or benevolence. At this level, possessing a right also includes having all the necessary conditions and means to capitalize on that right. It means that the owner of a right has a real capability of exercising his right” (ibidem, pp. 2-3). Sobre os direitos fundamentais como “trunfos”, cfr. DWORKIN, Ronald, Los Derechos en Serio, trad. para o espanhol por Marta Guastavino, 5.ª reimpr. da 2.ª ed., Editorial Ariel, Barcelona, 2017, p. 37 (e, em Portugal, NOVAIS, Jorge Reis, Direitos Fundamentais e Justiça Constitucional, AAFDL, Lisboa, 2017, pp. 49 e ss.). Em termos jurisprudenciais, cfr. o paradigmático caso Lüth, do Tribunal Federal Alemão (BVerfGE 7, 198).

[13] RAPOSO, Vera Lúcia, Direito à Imortalidade…, p. 159.

[14] Como exposto no capítulo “2.3.2. A identificação do direito à reprodução na ordem jurídica”.

[15] RAPOSO, Vera Lúcia, Direito à Imortalidade…, p. 290. Também evidenciando esse aspecto “publicista” da PMA, cfr. DEECH, Ruth, Losing Control?…, pp. 592-593.

[16] Em Portugal, adotou-se, em princípio, um regime de anonimato legal das doações de gametas, permitindo-se apenas o acesso à dados de natureza genética e informações sobre eventuais impedimentos matrimoniais. O conhecimento da identidade civil do doador só era possível se autorizado pelo próprio titular ou por “razões ponderosas” reconhecidas em decisão judicial. Apesar de num primeiro momento a Corte Constitucional manifestar-se pela constitucionalidade desse regime (cfr. ac. n.º 101 do Tribunal Constitucional, de 01 de abril de 2009, Conselheiro relator Carlos Fernandes Cadilha), declarou, em maio de 2018, a inconstitucionalidade dos arts. 15.º, n.os 1 e 4, 10.º, n.os 1 e 2, e 19.º, n.º 1, todos da LPMA, face a restrições desnecessárias ao conhecimento da identidade dos doadores de gametas, fundamentalmente sustentada com base no direito ao conhecimento das origens genéticas (cfr. ac. n.º 225 do Tribunal Constitucional, de 07 de maio de 2018, Conselheiro relator Pedro Machete). Ato contínuo, na tentativa de adequar o regime legal, aprovou-se a Lei n.º 48/2019, de 8 de julho, que passou a permitir não apenas o acesso às informações de natureza genética, mas também o conhecimento da identidade civil dos doadores mediante simples requisição (art. 15.º, n.º 2, da LPMA). Ainda que não seja mais possível enquadrarmos o direito à intimidade e reserva da vida privada e familiar às doações de gametas que ocorram perante o novo regime legal (neste cenário, o interesse do doador é meramente autotutelável, isto é, se não concorda com a liberação de seus dados, basta que não intervenha no processo reprodutivo), essa proteção ainda é subsumível às doações ocorridas no antigo regime, que garantia a confidencialidade da identidade civil do doador (na redação original da Lei n.º 32/2006). Nesse ponto, Lei n.º 48/2019 estabeleceu uma norma transitória: “1 – Exceto nos casos em que os dadores autorizem de forma expressa o levantamento do anonimato, são abrangidos por um regime de confidencialidade da identidade civil do dador: a) Os embriões resultantes de doações anteriores ao dia 7 de maio de 2018 e utilizados até cinco anos após a entrada em vigor da presente lei; b) Os gâmetas resultantes de doações anteriores ao dia 7 de maio de 2018 e utilizados até três anos após a entrada em vigor da presente lei; c) As dádivas que tiverem sido utilizadas até ao dia 7 de maio de 2018. 2 – O regime de confidencialidade do dador, a que se refere o n.º 1, não prejudica o direito de acesso às informações previstas nos n.os 2, 3 e 5 do artigo 15.º da Lei n.º 32/2006, de 26 de julho, na redação dada pela presente lei. 3 – Findos os prazos previstos no n.º 1, os gâmetas e embriões doados ou resultantes de doações são destruídos no caso de o dador não ter, durante esse período, autorizado o levantamento do anonimato sobre a sua identificação civil”.

[17] RAPOSO, Vera Lúcia, Direito reprodutivos…, p. 117.

[18] Como evoca OLIVEIRA, Guilherme de, Aspectos jurídicos da procriação assistida…, p. 06.

[19] OLIVEIRA, Guilherme de, Beneficiários da Procriação Medicamente Assistida…, p. 36.