José Luís Saragoça

Advogado.
Professor Universitário em Cursos Pós Graduados de Direito dos Transportes Terrestres e Direito Aéreo.
Consultor Jurídico da ANTRAM.
Exerceu o cargo de Director dos Serviços Jurídicos da Navegação Aérea de Portugal, NAV Portugal, E.P.E., onde se especializou em Direito Aéreo da Navegação Aérea e em Contratação Pública.


O Contrato de Transporte Internacional Rodoviário de Mercadorias é a recente obra de sua autoria. Obra publicada pelo Grupo Almedina e disponibilizada no mercado a 15 de Dezembro de 2022.

Consulte a obra neste link.


ÍNDICE

I-Resumo.

II- O contrato internacional de venda de bens e a Convenção CISG.

III- O contrato de transporte internacional rodoviário de mercadorias e a Convenção CMR.

IV- A situação especial do Transitário no quadro do contrato de transporte rodoviário de mercadorias.

V- Os INCOTERMS e a sua utilização como critério indiciário da qualificação da posição do Transitário no contrato de transporte internacional rodoviário de mercadorias.

I

RESUMO

Na presente dissertação, examinar-se-á a função que os INCOTERMS podem desempenhar enquanto critério indiciário e qualificador da posição do Transitário numa operação de transporte rodoviário internacional de mercadorias.

Apesar de o contrato de venda de bens e o contrato de transporte rodoviário de mercadorias serem figuras jurídicas distintas providas de natureza e regimes próprios que se não confundem, algumas das condições do primeiro podem influenciar o segundo, moldando o programa prestacional projectado pelas partes e que visa o resultado da entrega da mercadoria a um destinatário.

Em verdade, a posição do transitário no quadro do contrato de transporte de mercadorias, é assaz mimética, actuando umas vezes como Expedidor (ou mesmo como Destinatário) por conta do dono das mercadorias (seja em nome próprio, como seu comissário, seja como seu mandatário, i.e, contemplatio domini), de outras como Transportador (seja contratado para o efeito, ab initio, seja porque, tendo sido inicialmente contratado para, como expedidor, contratar um

transportador, decide, posteriormente, assumir, por sua iniciativa, essa qualidade e posição, passando a ser o transportador contratual [1].

A determinação da exacta posição do Transitário no contrato de transporte de mercadorias é tarefa imprescindível à determinação do feixe de direitos e obrigações que sobre si pendem – em suma do regime de responsabilidade obrigacional aplicável, e que são naturalmente diversos (senão mesmo antagónicos) consoante aquele actue como Expedidor ou Destinatário ou como Transportador. Esta indagação é tarefa complexa porquanto a regulamentação administrativa que define as condições de acesso e exercício da actividade de Transitário [2] não precisa as situações em que o Transitário actua como Expedidor e como Transportador nem fornece critérios auxiliares que permitam diferenciar, em cada caso, esses diferentes posicionamentos.

Com efeito, o Transitário, mercê da natureza polimórfica da responsabilidade com que actua, tenderá, numa determinada relação de transporte, a rejeitar a qualidade de transportador e a usar as vestes de expedidor ou destinatário uma vez que são estas as que melhor protegem os seus interesses por contrapartida à qualidade de transportador.

Tendo em vista a definição da qualidade assumida pelo Transitário numa dada operação de transporte internacional rodoviário de mercadorias e, consequentemente, o regime de responsabilidade que se lhe deve aplicar, a doutrina tem apresentado determinados critérios diferenciadores, de entre os quais, por se revelar o mais completo, destacamos o das obrigações assumidas pelas partes no contrato de transporte, aferidas por factos indiciários que lhe sejam circunstanciais.A esta luz, as condições do contrato internacional de compra e venda de bens, por via de regra subjacente ao contrato de transporte, que imponham a uma das partes a contratação do transporte, surgem como factos indiciários de primordial relevância a utilizar para o efeito e, neste particular, destacam-se os Incoterms (International Commercial Terms), os quais embora inoponíveis ao transitário que não é parte na compra e venda internacional, nos fornecem pistas relevantes para a interpretação dos contratos em que o mesmo intervenha.

Com esta finalidade, na presente dissertação, será analisado o papel dos Incoterms EXW (Ex works), “FCA – Franco Transportador (local de destino combinado)” e “CPT (Porte Pago até …. (local de destino das mercadorias)”, introduzidos pela ICC – International Chamber of Commerce na revisão de 1990 dos Incoterms, ou seja, há mais de duas décadas,os dois últimos utilizados na venda internacional de mercadorias que inclua o seu transporte pelo modo rodoviário, como muito relevante critério indiciário para a determinação da posição assumida pelo Transitário numa concreta operação de transporte internacional rodoviário de mercadorias.

II

O CONTRATO INTERNACIONAL DE VENDA DE BENS E A CONVENÇÃO CISG.

1. – Normalmente, o contrato de compra e venda de mercadorias está na origem do contrato de transporte.

Com efeito, o comércio de bens e os transportes são inseparáveis.

Sem o trato comercial, não existiriam os transportes porque é daquele que surge a necessidade de deslocar os bens transacionados até aos locais em que são utilizados ou consumidos.

Sendo assim, em regra, a compra e venda de mercadorias está subjacente ao contrato de transporte que lhe serve de instrumento.

Segundo a noção vertida no artº 874º do Cod Civ. “compra e venda é o contrato pelo qual se transmite a propriedade de uma coisa, ou outro direito, mediante um preço”.

A compra e venda de bens é, assim,  

– Um contrato típico ou nominado, reconhecido como categoria jurídica específica;

– Um negócio habitualmente não formal e um contrato consensual (em contraposição ao contrato real quo ad constitutionem);

– Um contrato real, visto que tem como efeito, a transmissão da propriedade de coisas e que, no caso de coisas determinadas, coincide com a sua aquisição– cfr. artº 879º a) do C.C.; [3]

– Um contrato com efeitos obrigacionais, dado que o vendedor assume uma obrigação de facere – a entrega da coisa, cfr artº 879º, b) e c) do CC;

– Um contrato sinalagmático e oneroso, uma vez que tem como contrapartida o pagamento de um preço.

Ademais, a compra e venda é internacional quando comprador e vendedor tenham os seus estabelecimentos em diferentes Estados.

O regime jurídico do contrato de compra e venda de mercadorias é distinto consoante as suas partes – vendedor e comprador, tenham, ambas,

estabelecimento em Portugal ou, pelo contrário, uma delas tenha estabelecimento noutro Estado.

 No primeiro caso, o contrato de compra e venda rege-se pelos artigos 463.º e segs do Código Comercial se for mercantil, constituindo, nesse caso, um acto comercial objectivo.

Nesta conformidade, quando tenham por objecto coisas móveis, são consideradas comerciais, “as compras de coisas móveis para revender, em bruto ou trabalhadas, ou simplesmente para lhes alugar o uso”- cfr artº 463º, 1º, Cod. Com. e “a venda de cousas móveis, em bruto ou trabalhadas, (…) quando a aquisição houvesse sido feita no intuito de as revender”– cfr artº 463º, 4º do Cod. Com.;

Se a compra e venda, entre partes estabelecidas no nosso País, não for considerada comercial, nos termos do artigo 464.º do Código Comercial, seguirá o regime da compra e venda previsto nos artigos 874.º e seguintes do Código Civil.

Este regime aplica-se igualmente à compra e venda mercantil entre partes estabelecidas em Portugal, como lei integradora dos casos omissos no Código Comercial.

10.– Se o contrato de compra e venda for celebrado entre partes que tenham estabelecimento em diferentes Estados e se estiverem reunidas as condições para a sua aplicação previstas no artº 1º [4], o regime será o da Convenção das Nações

Unidas sobre Contratos para Venda Internacional de Mercadorias, adotada em Viena, em 11 de Abril de 1980.

Portugal aprovou esta Convenção, para adesão, por meio do Decreto n.º 5/2020, de 7 de Agosto.

Uma vez que que a República Portuguesa depositou, em 23 de setembro de 2020, o seu instrumento de adesão à Convenção, como foi tornado público pelo Aviso n.º 48/2020, de 10 de Outubro, de acordo com o disposto no artigo 99.º, n.º 2, da Convenção, esta entrará em vigor para a República Portuguesa no dia 1 de Outubro de 2021.[5]

Esta Convenção, conhecida pelo acrónimo CISG, na sigla em inglês de Convention on Contracts for the International Sale of Goods, ou CVIM, na sigla em francês, de Convention sur les Contrats de Vente Internationale de Marchandises, foi aprovada em Viena, no dia 10 de Abril de 1980, por uma conferência diplomática que reuniu 62 Estados.

A entrada em vigor desta Convenção teve lugar no dia 1 de Janeiro de 1988, para os onze primeiros Estados que depositaram, junto ao Secretário-Geral das Nações Unidas, os respectivos instrumentos de adopção.

Tais Estados foram: Argentina, China, Egito, Estados Unidos, França, Hungria, Itália, Iugoslávia, Lesoto, Síria e Zâmbia.

Com a adesão de Portugal que se tornará efectiva em 1 de Outubro de 2021, a CISG passou a ser adoptada por 94 países [6] que, em conjunto, respondem por mais de três quartos do valor negociado no comércio mundial.

O texto da CISG foi o resultado de um notável esforço coordenado de países de culturas jurídicas distintas (de sistemas de common law e de civil law) e graus de desenvolvimento económico diferentes de diversas partes do mundo, sob a coordenação da Comissão das Nações Unidas para o Direito Mercantil Internacional – UNCITRAL.

Resumidamente, dir-se-á que a CISG é a mais bem-sucedida lei uniforme sobre trocas mercantis, reunindo, num só instrumento internacional, as matérias tratadas nas duas Convenções da Haia de 1964 (ULFC – Uniform Law on the Formation of Contracts for the International Sale of Goods e ULIS – Uniform Law for the International Sale of Goods) que, precedentemente regulavam, respectivamente, a formação dos contratos de compra e venda internacional e as obrigações das partes nesses contratos.

Tendo Portugal aderido à Convenção CISG, é pelas suas normas que se regem os contratos de compra e venda internacional quando uma das partes tenha estabelecimento em Portugal – cfr artº 1º, 1, b).

III

O CONTRATO DE TRANSPORTE INTERNACIONAL RODOVIÁRIO DE MERCADORIAS E A CONVENÇÃO CMR.

2.- Segundo a noção que perfilhamos, o contrato de transporte rodoviário de mercadorias é o celebrado entre transportador e expedidor, nos termos do qual o primeiro se obriga, mediante remuneração, a deslocar mercadorias, por via rodoviária, por meios próprios ou de terceiro e a entregá-las a uma terceira parte, o destinatário.[7]

3.- O contrato de transporte de mercadorias apresenta caraterísticas próprias que o distinguem de outros contratos afins:

O contrato de transporte rodoviário de mercadorias é, assim:

  1. Um contrato comercial, regulado em legislação extravagante ao Código Comercial – a Convenção CMR, no que respeita ao contrato internacional e o Decreto-Lei n.º 239/2003, de 4 de Outubro que regula o contrato nacional.
  2. Um contrato consensual que não carece de forma escrita (vg. artigo 4º da CMR), como é apanágio dos actos e obrigações comerciais em geral.
  3. Um contrato sinalagmático e oneroso (cfr artigo 1º da CMR), mediante o qual o transportador tem o direito a receber uma remuneração em contrapartida da prestação do transporte, ao contrário do que sucede no contrato de transporte internacional aéreo que tanto pode ser oneroso ou gratuito, salvo no caso do transporte aéreo comercial em que a remuneração é um elemento essencial do contrato. ([8])
  4. Um contrato de resultado e não de meios, neste último caso como sucede noutros contratos afins ao de transporte, tais como o de locação de veículos ou de tracção de semi-reboques. O contrato de transporte caracteriza-se, como se disse, por consubstanciar uma obrigação de resultado ([9]) – a entrega das mercadorias ao destinatário, enquanto nos contratos de locação e de tracção de veículos, o locador e o traccionador, respectivamente, se vinculam a

proporcionar um meio. No primeiro caso, a proporcionar o gozo e a normal utilização de um veículo, no segundo a assegurar o esforço de tracção de um semi-reboque.

  • Um contrato dinâmico, executado mediante a circulação de veículos automóveis e, enquanto tal, sujeito a numerosas vicissitudes decorrentes das circunstâncias próprias da circulação por estrada quer técnicas quer naturais, designadamente por impedimentos causados por acidentes de circulação, por fenómenos atmosféricos, por corte de vias, por recusa da entrega das mercadorias imputável ao transportador ou ao destinatário.

Acresce que a distância a percorrer durante o transporte, o elemento de internacionalidade da deslocação e o afastamento físico do titular do direito de dispor das mercadorias destas últimas, contribuem decisivamente, a par das causas supra referidas, para que a execução de um contrato de transporte de mercadorias constitua uma verdadeira aventura rodoviária.

Este dinamismo do contrato de transportes encontra a sua expressão no facto de poder ser modificado pelo expedidor ou pelo destinatário, por iniciativa própria ou a pedido do transportador, no exercício dos respectivos direitos de disposição da mercadoria, cumpridas que estejam as condições previstas no artigo 12º da CMR, no caso do contrato ser internacional e nos nºs 2 a 4 do artº 5º do Decreto-Lei n.º 239/2003, de 4 de Outubro que aprovou o regime jurídico do contrato de transporte rodoviário nacional de mercadorias (LCTR), se o contrato for de âmbito geográfico nacional.

4.- Quando o contrato de transporte reúna as quatro condições de aplicação previstas no seu artº 1º, aplicar-se-lhe-á o regime da Convenção relativa ao contrato de transporte internacional de mercadorias por estrada, abreviadamente CMR, aprovada para adesão pelo Decreto-Lei nº 46 235, de 18 de Março de 1965 e que entrou em vigor na ordem jurídica nacional em 21 de Dezembro de 1969.

À semelhança do que sucede na Convenção CISG quanto ao contrato de venda de mercadorias, a CMR não contém uma definição do contrato de transporte de mercadorias.

As quatro condições de aplicação da CMR são as seguintes:

1ª condição: as mercadorias devem ser objecto de um contrato de transporte, excluindo-se, para este efeito, os transportes postais efectuados ao abrigo de convenções internacionais, os transportes funerários e os transportes de mobiliário por mudança de domicilio;

2ª condição: o contrato deve ser celebrado a título oneroso;

3ª condição: o contrato deve ser executado por meio de veículos automóveis;     4ª condição: o local de tomada da mercadoria a cargo do transportador e o lugar de entrega previstos, tais como indicados no contrato, devem estar situados em países diferentes, sendo, ao menos um deles, país contratante.             

Inicialmente aprovada por nove países, numa Conferência internacional que teve lugar em Génève, em 19 de Maio de 1956, aquando de uma sessão do Comité de Transportes Interiores da Comissão Económica para a Europa da ONU, a CMR encontra-se actualmente subscrita pelos seguintes 69 Estados Contratantes da Europa, África e Ásia: ([10]) Afeganistão, Albania, Alemanha, Arménia, Áustria, Azerbeijão, Bielorussia, Belgica, Bosnia-Herzegovina, Bulgária, Chipre, Croácia, Dinamarca, Espanha, Estonia, Eslováquia, Eslovénia, Federação Russa, Finlandia, França, Geórgia, Grécia, Hungria, Irão (República Islâmica do), Irlanda, Itália, Jordânia, Kazaquistão, Kirguistão, Letónia, Libano, Lituânia, Luxemburgo, Macédonia do Norte, Malta, Marrocos, Moldóvia, Mongolia, Montenegro, Noruega, Omã, Paquistão, Países-Baixos,  Polónia, Portugal, Síria, Republica Checa,  Roménia, Reino Unido, Sérvia, Síria (República Árabe da), Suécia, Suiça, Tajiquistão, Tunísia, Turquemenistão, Turquia, Ucrânia e Usbequistão.

A CMR foi actualizada por duas vezes:

– a primeira, pelo Protocolo de 1978, aprovado, para adesão, pelo Decreto nº 28/88, de 6 de Setembro e que substituiu o limite máximo de responsabilidade do transportador que, inicialmente, era de 25 Francos-Ouro por kg de mercadoria perdida ou avariada, pelo limite máximo de 8,33 Direitos Especiais de Saque (DES) por kg de mercadoria perdida ou avariada;

– a segunda, pelo Protocolo de 2008, aprovado para adesão pelo Decreto n.º 20/2019, de 30 de Julho, sobre a declaração de expedição eletrónica, a fim de facilitar o estabelecimento opcional da versão eletrónica da declaração de expedição (guia de transporte), designada por «e -CMR», o qual, contudo, não modificou o texto da CMR então em vigor.

IV

A SITUAÇÃO ESPECIAL DO TRANSITÁRIO NO QUADRO DO CONTRATO DE TRANSPORTE RODOVIÁRIO DE MERCADORIAS.

5.-Nas operações de transporte internacional de mercadorias é comum a intervenção de empresas transitárias.

Esta intervenção justifica-se pelo facto de, num contexto internacional de comércio globalizado, a organização e a realização das formalidades e operações que são inerentes ao transporte internacional serem muito complexas e, por esta razão, não estarem ao alcance da maior parte dos expedidores e destinatários, carecendo de ser realizadas por profissionais especializados na prática desses actos,  juridicamente materializados na celebração de contratos de expedição com o vendedor e exportador da mercadoria (expedidor efectivo).

6.- A par desta função de expedição (ou de recepção) da mercadoria pelo Transitário, desde há muito que a jurisprudência dos tribunais portugueses vai no sentido de que o contrato de transporte, por consubstanciar uma obrigação de resultado, pode ser executado pelo primeiro contratante transportador ou por um terceiro ([11]) o que, sem dúvida, favorece a intervenção das empresas transitárias nessa outra faceta da sua actividade.

7.- Todavia, nem sempre o transitário é contratado para transportar as mercadorias e frequentemente é-o para fazê-las transportar.

A distinção não é sempre evidente, uma vez que a posição do transitário, vis-a-vis o contrato de transporte, é frequentemente mimética, adoptando a posição de expedidor, transportador ou destinatário no contrato de transporte, seja por força de contratos de comissão ou de mandato, com ou sem representação, seja de verdadeiros contratos de transporte. ([12])

8.- O Decreto-Lei n.º 255/99, de 7 de Julho que disciplina o acesso e exercício da actividade transitária não é de grande utilidade para a definição dos contratos que materializam essa actividade.

Com efeito, a própria definição da actividade transitária constante do artº 1º do referido diploma legal fornece-nos dela uma imagem mais económica do que jurídica, importando para a presente análise, reter, contudo, que o transitário pode

celebrar contratos com transportadores, no fundo, como se verá, o objecto do contrato de expedição (cfr. alínea b) do nº 2 do artº 1º).

Os artºs 13º a 17º do Decreto-Lei nº 255/99 que constituem o estatuto jurídico-privado do transitário previsto no diploma legal, também não são concludentes.

Assim, no nº 1 do artº 13º dispõe-se que “As empresas transitárias podem praticar todos os actos necessários ou convenientes à prestação de serviços, bem como assumir em nome próprio ou em nome do cliente ou do destinatário dos bens, toda e qualquer forma legítima de defesa dos interesses correspondente”.

Ou seja, o transitário, além de celebrar contratos de transporte, pode também praticar, acessoriamente, todos os actos necessários ou convenientes à sua prestação de serviços. podendo actuar em nome próprio ou em nome do cliente, isto é, sem ou com representação.

O que leva ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO a considerar que a noção da actividade do transitário é ampla, correspondendo o contrato executado pelo

transitário a um contrato que envolve elementos de organização, de mediação, de agência e de prestação de serviço. [13]

9.- Analisando as diversas posições em que pode actuar numa operação de transporte internacional, o transitário tanto pode agir como transportador, como expedidor ou destinatário/recebedor da mercadoria.

Quando actue como transportador, o transitário  pode fazê-lo em dois momentos: ou ab initio, situação em que é contratado para transportar a mercadoria, pelo vendedor/exportador ou pelo comprador/importador da mercadoria (ou por quem actue por sua conta e no seu interesse, em regra, outro transitário) ou, tendo sido contratado ao abrigo de um contrato de expedição (ou de recepção) das mercadorias, para contratar um transportador, decide, por sua iniciativa, ocupar-se do transporte, numa situação de transitário-transportador.

Quando actue como expedidor ou destinatário, o transitário age no quadro de um contrato de expedição ou de recepção.

10.- Ao contrato de expedição ou de recepção

   

são aplicáveis, em primeiro lugar, as normas substantivas do Decreto-Lei nº 255/99, de 7 de junho, que regulem o conteúdo do contrato de expedição.

Na medida em que estas normas apenas regulam em parte este contrato, se se verificar uma lacuna, há que aplicar, segundo os casos, as normas substantivas relativas ao mandato comercial (artigos 231º e segs do CCom) ou as normas relativas ao contrato de comissão (artigos 266º e segs do CCom).

Se ainda assim, o recurso a estas disposições não se revelar suficiente para a integração da lacuna, haverá que aplicar por força do artigo 3º do CCom., as disposições referentes ao contrato de mandato civil previstas no CC (artigos 1157º e ss.) ([14])

Em síntese, o contrato de expedição seguirá, regra geral, as disposições do mandato comercial ou da comissão.

O contrato de expedição celebrado com um transitário, será, pois, um mandato, com ou sem representação, com uma garantia del credere legal [15] associada, a qual decorre do artº 15º do Decreto-Lei nº 255/99 que estabelece uma regra contrária à do artigo 269º do Código Comercial, uma vez que o princípio geral passou a ser o de que os transitários respondem perante o seu cliente, não só pelo incumprimento das suas obrigações, como se diz na referida disposição legal (o que é uma redundância) “bem como pelas obrigações contraídas por terceiros com quem hajam contratado, sem prejuízo do direito de regresso”- cfr o referido artº 15º.

11.- O mais das vezes, os transitários celebram com os expedidores efectivos das mercadorias, contratos de expedição em nome próprio, sem contemplatio domini, e por conta daqueles.

Ou seja, porque o vendedor e exportador encarrega o transitário, como especialista da expedição, de celebrar, em nome deste último, os contratos de transporte, os contratos de expedição seguem o regime da comissão mercantil, sendo, pois, frequentemente, contratos de comissão de expedição.

 De acordo com o artigo 266.º do Código Comercial, “dá-se contrato de comissão quando o mandatário executa o mandato mercantil sem menção ou alusão alguma ao mandante, contratando por si e em seu nome, como principal e único contraente”.

Como refere ANTUNES VARELA ([16]), esta é uma forma do contrato de mandato sem representação que vem regulado nos artigos 1180.º e segs do Código Civil.

É pela circunstância de a comissão ser uma subespécie do mandato sem representação que o artigo 267.º do Código Comercial prevê que entre o comitente e o comissário dão-se os mesmos direitos e obrigações que entre mandante e mandatário.”O que caracteriza, em comum, os dois contratos, o civil e o mercantil, é o facto de o mandatário sem representação e o comissário agirem em seu próprio nome (nomine próprio) e por conta de outrem.

V

OS INCOTERMS E A SUA UTILIZAÇÃO COMO CRITÉRIO INDICIÁRIO DA QUALIFICAÇÃO DA POSIÇÃO DO TRANSITÁRIO NO CONTRATO DE TRANSPORTE INTERNACIONAL RODOVIÁRIO DE MERCADORIAS.

12.- As plúrimas formas de actuação do Transitário numa relação de transporte internacional de mercadorias por estrada, são, amiúde, fonte de litígios decorrentes da extrema dificuldade de determinação da qualidade em que intervém no contrato de transporte e da responsabilidade assumida em relação a perdas, avarias ou atrasos na entrega das mercadorias transportadas, o que leva  JACQUES PUTZEYS ([17]),  eminente académico estudioso do contrato de transporte rodoviário de mercadorias, a afirmar que esta confusão se deve  ao facto de as empresas transitárias não serem, normalmente expedidores puros e actuarem, frequentemente, também como transportadores, ao abrigo de condições gerais contratuais pouco claras que semeiam a confusão pelo que, frequentemente, quando o transportador efectivo não cumpre as suas obrigações, o transitário que se intitulava comissário de transportes, para esquivar-se a responsabilidades, passa a denominar-se comissário expedidor ou apenas comissário ou simplesmente transitário que, por si só, é um conceito vago que nada define.

13.- Tendo em vista resolver esses problemas, a doutrina tem elaborado diversos critérios auxiliares, suportados em factos indiciários, que permitam, em cada caso, apurar em que qualidade o Transitário interveio, se como expedidor ou destinatário, ou se como transportador para, num segundo momento, aplicar o regime de responsabilidade que ao caso couber.  

Os principais critérios construídos pela doutrina são os seguintes:

  1. O critério da actividade exercida pelo transitário  é defendido por alguns autores ([18]).

Por este critério, o transitário só celebraria contratos de expedição, enquanto que o transportador, legalmente habilitado para o efeito, ao invés, só estabeleceria contratos de transporte.

De outro ângulo, outros autores ([19]) sustentam que “a distinção entre transitário e transportador é feita tendo em consideração dois critérios distintos: i) os riscos assumidos pelo transportador, por mera contraposição à mera celebração de contratos de transporte a cargo do transitário e ii) as particulares modalidades de organização da actividade desenvolvida por ambos.

No contrato de expedição estamos perante uma substituição gestória na celebração de um contrato de transporte, enquanto no contrato de transporte existe uma obrigação de resultado a cargo do transportador traduzida na obrigação de entregar as mercadorias incólumes ao destinatário.”

  • Para outros doutrinadores([20]), os critérios diferenciadores devem ser dois – a forma do correspectivo pago ao transitário e o modo como as partes configuraram a responsabilidade do transitário.

Em caso de conflito entre os dois critérios, deveria prevalecer o primeiro, i.e. como foi remunerado o transitário, pelo pagamento dum preço de transporte (frete), caso em que será considerado como transportador, ou por uma importância relativa a outras operações por ele praticadas, por exemplo, contratação do transportador, emissão de documentos, armazenagem, embalagem da mercadoria, etc, situação em que assumirá a posição de expedidor ou destinatário.

  • A doutrina mais recente ([21]), e é o critério que perfilhamos, vai no sentido de que o elemento diferenciador entre os contratos de expedição e os de

transporte, celebrados pelos transitários, é o das obrigações por eles assumidas, aferidas por factos indiciários circunstanciais ao contrato, salvo se do acordo não resultar uma vontade expressa das partes, num ou noutro sentido.

Assim, na doutrina nacional, MANUEL CASTELLO-BRANCO BASTOS ([22]) aponta vários índices i) “a discricionariedade que o transitário possa ter na sua actuação, ii) o correspectivo contratado pelas partes,” iii) a circunstância de o transitário ter emitido os documentos de transporte e a qualidade em que os emitiu (se em nome próprio, se alieno domine) e, precipuamente, iv) “o estricto conteúdo de quanto se obrigou assumida a prestar ao expedidor (saber se se comprometeu a transportar ou a realizar o transporte, por meios próprios ou alheios, ou, por outro lado, se tão-só se obrigou a celebrar o contrato de transporte, ou, de outro modo a organizá-lo, praticando os actos necessários para que ele aconteça)”.

Esta doutrina recorre, assim, aos seguintes factos indiciários:

– a posição de transportador, assumida pelo transitário numa guia de transporte;

– a emissão de um FCR (Forwarders Certifcate of Receipt), situação em que o transitário assumiria a função de expedidor ou destinatário, ou de um FCT (Forwarders Certificate of Transport), caso em que desempenharia a de transportador; os FCR e FCT são documentos criados pela FIATA (Federation International des Agents Transitaires) e que são normalmente utilizados pelas empresas transitárias;

– a referência feita a Condições Gerais de Prestação de Serviços que coloquem o acento tónico nas operações de transporte;

– o critério da facturação, ou seja quais os serviços facturados, conforme o preço do transporte seja cobrado ao cliente ou seja facturado apenas o preço de outras operações acessórias ou adjacentes ao transporte, nomeadamente a consolidação de mercadorias, a embalagem, despesas de

seguro, de armazenagem, de conferência de mercadorias à chegada, etc; por regra, o transitário será havido como expedidor quando se faça retribuir pelos seus serviços por uma percentagem calculada sobre o custo total dos serviços prestados por conta do seu “cliente”; pelo contrário será considerado como transportador quando a sua retribuição consistir num pagamento global; ([23])

-o teor das instruções que ao

•  

 longo do contrato são proferidas pelo expedidor ou carregador. ([24])

  • A estes indícios, adicionamos nós, as condições do contrato de compra e venda, por via de regra subjacente ao contrato de transporte, plasmadas nos Incoterms (International Commercial Terms), os quais embora inoponíveis ao transitário que não é parte na compra e venda internacional, nos fornecem pistas relevantes para a interpretação dos contratos em que o mesmo intervenha.

14.-Os INCOTERMS,elaborados e publicados, desde 1936, sob a égide da Câmara de Comércio Internacional, com sede em Paris, vulgarizaram-se no comércio internacional e são constituídos por cláusulas típicas que definem, em termos uniformes, as principais condições dos contratos internacionais de compra e venda de mercadorias ou dos contratos mistos de compra e venda e transporte de mercadorias,[25] (rectius  de compra e venda com transporte de mercadorias), nomeadamente as obrigações do vendedor e do vendedor em matéria de fornecimento da mercadoria em boas condições, da obtenção de licenças, autorizações e formalidades aduaneiras, da contratação do transporte e seguro da

mercadoria, do momento da transferência do risco por perdas e danos das mercadorias [26], da disponibilização dos documentos de transporte, do local da entrega da mercadoria, da divisão de custos com as mercadorias e despesas aduaneiras, etc.

 15.- Os INCOTERMS, em número de 11, distribuem-se nos seguintes quatro grupos E, F, C e D, de acordo com as responsabilidades e custos assumidos, em sentido crescente de E para D:- grupo E: de ex, partidas: representa a obrigação mínima para o exportador: a mercadoria é colocada à disposição do comprador no local da produção ou na “fábrica”.


– grupo F: de free, livre: a mercadoria é entregue ao transportador, não sendo a contratação do transporte obrigação do vendedor;

– grupo C: de cost ou carriage, custo ou transporte: o custo do transporte principal é assumido pelo vendedor: mas não os riscos subsequentes ao carregamento da mercadoria no meio de transporte;

– grupo D: de delivery: entrega: a obrigação máxima para o vendedor, que assume todos os riscos e os custos (transporte e consoante o caso, seguro e impostos aduaneiros) até ao local de entrega.

Nesta conformidade, os onze INCOTERMS são os seguintes:

– grupo E:

EXW (ex works): a mercadoria é entregue na “fábrica”, não sendo o transporte da responsabilidade do vendedor.

– grupo F:

FCA (free carrier- Franco Transportador ponto designado): a mercadoria é entregue ao transportador no ponto indicado no contrato, aí cessando a função do vendedor;

FAS (free alongside ship – Franco ao longo do navio): a situação é semelhante ao FCA, sendo a mercadoria entregue ao lado do navio;
FOB (free on board – Franco a Bordo): idem, sendo a mercadoria entregue a bordo do navio.

grupo C:

CFR (cost and freight – Custo e Frete): o vendedor assume o custo e o frete;

CIF (cost, insurance and freight – Custo, Seguro e Frete): idem, utilizado na venda marítima, mas incluindo, também, o seguro;

CPT (carriage paid to – Porte Pago até): idem, utilizado no transporte rodoviário e ferroviário, mas especificando se o local até onde o porte é pago;

CIP (carriage and insurance paid to – Porte e Seguro Pagos até): idem, utilizado no transporte rodoviário e ferroviário e inclui o seguro da responsabilidade do vendedor.

– grupo D:

DAF (delivered at frontier – Entregue na Fronteira): utilizado no transporte ferroviário; o vendedor assume os custos e os riscos até à fronteira indicada no contrato;

DES (delivered ex ship – Entregue no Navio): utilizado na venda marítima; o vendedor suporta os custos e os riscos do carregamento e do transporte; a transferência dos riscos e custos efectua-se a bordo do navio, no local de chegada, sem que a mercadoria esteja desalfandegada;

DEQ (delivered ex quay – Entregue no Cais- Direitos pagos): idem, utilizado na venda marítima, mas no cais do porto de destino;

DDU (delivered duty unpaid – Entregue sem Direitos Pagos): embora o vendedor deva cumprir as formalidades aduaneiras e suportar os custos e riscos inerentes, a mercadoria é entregue sem o pagamento dos direitos aduaneiros que são da responsabilidade do comprador;

DDP (delivered duty paid – Entregue com Direitos Pagos): o vendedor assume o risco da mercadoria até à entrega da mercadoria ao comprador e os custos máximos, incluindo o transporte, o seguro e o pagamento dos direitos aduaneiros.

16.-The Vienna Convention represents a statutory framework of law created by states, whereas the lex mercatoria is a body of spontaneous law – law created by standart practices and arbitral decisions” [27]

Em verdade, desde o século XI que o surgimento e a expansão do comércio a partir das cidades italianas de Génova, Florença e Veneza, das guildas do Mar do Norte e do Consolat del Mar que, na idade média, agrupava várias cidades mediterrânicas, criaram a necessidade de os comerciantes se associarem em organismos profissionais para regular a sua actividade, os quais, respondendo à incapacidade do Direito Romano estadual de acompanhar este desenvolvimento comercial, foram  estabelecendo normas que progressivamente se transformaram em usos comerciais, de prática aceite e generalizada no comércio internacional. [28]

A Lex Mercatoria é, assim, um direito dos comerciantes, constituído por um corpo de regras jurídicas formado por costumes, usos, cláusulas contratuais gerais e modelos contratuais, bem como, pelos princípios gerais de Direito e pelas regras desenvolvidas pela jurisprudência arbitral.

A par do Unidroit (Instituto Internacional para a Unificação do Direito Privado), criado em 1926 como órgão auxiliar da Sociedade das Nações, a Câmara de Comércio Internacional, criada em 1919 como uma federação de associações comerciais e de comerciantes, tem-se destacado, quer na resolução de litígios comerciais, produzindo um importantíssimo acervo de jurisprudência arbitral, quer na criação de uma softlaw ou jus mercatorium, sendo autora de  numerosas regras jurídicas não estaduais de aceitação generalizada pelas empresas comerciais, como são as Regras e Usos Uniformes relativos aos Créditos Documentários, as Regras Uniformes sobre Garantias Autónomas e os INCOTERMS, além de inúmeros modelos contratuais (v.g., de compra e venda, agência, concessão comercial, distribuição ocasional, franchising) e de cláusulas de força maior e hardship.[29]

17.- Apesar de consubstanciar um direito de fonte estadual, a Convenção CISG, numa clara expressão do princípio da autonomia da vontade [30], reconhece inequivocamente a suprema importância dos usos comerciais como fonte normativa nas transações internacionais.

Nesta conformidade, o artº 9º da Convenção CISG dispõe o seguinte:

“Artigo 9.º

1 — As partes estão vinculadas por quaisquer usos em que tenham acordado, bem como por quaisquer práticas que tenham estabelecido entre si.

2 — Salvo acordo em contrário, considera -se que as partes aplicaram tacitamente ao contrato ou à sua formação um uso que conhecessem ou devessem ter conhecimento e que, no comércio é amplamente conhecido e regularmente observado pelas partes em contratos do mesmo tipo, no ramo comercial considerado.”

Os usos desempenham, assim o seu papel, por duas vias:

– Ou são estipulados expressamente no contrato, por exemplo através da referência expressa a um determinado INCOTERM, EXW, FCA ou CIP, hipótese regulada no nº 1, ou,

– Se se tratar de usos do comércio que as partes conhecessem ou devessem ter conhecimento e que no comércio internacional sejam regularmente observados pelas partes em contratos do mesmo tipo, no ramo comercial considerado, [31] os mesmos consideram-se tacitamente aplicados ao contrato ou à sua formação, situação prevista no nº 2 deste artº 9º. [32]

Saber se os INCOTERMS (ou alguns deles) constituem usos do comércio internacional com aquelas características e, por conseguinte, aplicáveis, no seu silêncio, ao contrato internacional de venda, é questão que analisaremos seguidamente.

18.- Chegados a este ponto, na viagem jurídica que decidimos empreender, vejamos então se os INCOTERMS podem (ou não) ser considerados usos de comércio internacional para efeitos da sua aplicação tácita ao contrato internacional de venda de mercadorias.

Em primeiro lugar, impõe-se uma precisão: a exegese do nº 2 do artº 9º da CISG, permite concluir que, no silêncio do contrato, apenas são de aplicação tácita, os usos comerciais que reúnam as seguintes condições:

1º-  uma prática uniforme e constante, reiterada de forma intensa ou usualmente em contratos do mesmo tipo, no ramo material considerado (elemento material);

1º- o seu conhecimento efectivo e concreto pelas partes ou o dever de os conhecer o que, neste último aspecto, nos reconduz à convicção de agir nesse sentido (opinio iuris) (elemento intelectual).

Ou seja, nem todos os usos comerciais, têm vocação legal para serem aplicados tacitamente ao contrato e servirem de elemento para a sua interpretação e integração; apenas o podem ser aqueles usos em relação aos quais as partes tenham a convicção de serem obrigatórios ou, pelo menos, necessários (“conhecessem ou devessem ter conhecimento”).

19.- A classificação dos INCOTERMS na categoria dos usos comerciais é objecto de controvérsia na doutrina que, sobre o tema, se divide em três correntes [33]:

a) Para uns autores, embora com algumas diferenças quanto à justificação, os INCOTERMS não integram os usos comerciais.[34]

b) Outros doutrinadores, defendem a opinião contrária, segundo a qual os INCOTERMS pertencem à categoria de usos comerciais internacionais. [35] 

A Jurisprudência, quer a do Supremo Tribunal de Justiça de Portugal quer a do Tribunal de Justiça da União Europeia, vai no sentido de reconhecer aos INCOTERMS, a natureza de usos mercantis. [36]

c) Finalmente, uma terceira via, menos extremada, sustenta que só alguns dos Incoterms e respectivas regras de interpretação e integração, como são os casos do EXW e do FOB e CIF, estes últimos usados na venda marítima, é que poderão constituir usos da venda internacional, sendo necessário examinar individualizadamente cada um dos termos normalizados e atender ao espaço geográfico em causa, tomando em consideração a  natureza das partes, o tipo e quantidade de mercadorias e o grau de desenvolvimento económico dos países em questão.[37]

20.- Embora perfilhemos a opinião dos que defendem que os INCOTERMS podem ser qualificados como usos comerciais, pendemos a considerar que essa classificação dependerá das circunstâncias do caso concreto, como entendem os cultores da terceira corrente.

Com efeito, é necessário ponderar os referidos termos em função dos factores individualizadores de cada contrato, nomeadamente, i) a natureza das partes, ii) o tipo e quantidade de mercadorias e iii) o grau de desenvolvimento económico dos países em questão. 

Sendo assim, no caso da exportação de artigos de vestuário e sapatos, dois dos principais produtos fabricados em Portugal e que são transportados por via rodoviária [38], os vendedores, utilizam, regular e reiteradamente, os INCOTERMS EXW (Ex Works) e FCA (Franco Transportador ponto designado), seja por razões económicas – o preço de venda dos bens exportados ficará mais barato, visto que não inclui o transporte, o seguro dos bens e a obtenção das licenças de exportação quando exigíveis, seja por razões de transferência do risco das mercadorias – o vendedor é exonerado da sua responsabilidade logo que a mercadoria é entregue à porta do local de produção, ao transportador contratado pelo comprador e, finalmente, por razões de dimensão das empresas exportadoras – estas são de reduzida dimensão, não dispondo de capacidade organizativa para se ocupar da contratação do transporte e do seguro, deixando essa contratação para o comprador/importador de maior dimensão, organização e capacidade financeira.

O termo EXW foi criado há mais de oitenta anos, na primeira versão dos INCOTERMS de 1936, enquanto que o termo FCA, assim como os CPT e CIP, foram incluídos na revisão de 1990, há mais de duas dezenas de anos, tendo substituído os termos do grupo F, criados em 1953 e que se dividiam por modo de transporte (FOR- Free on Rail, FOT –  Free on Truck), constituindo uma prática corrente nos contratos de venda com transporte.  

Nesta conformidade, no sector nacional exportador de têxteis e sapatos, os INCOTERMS EXW e FCA, pela sua natureza de práticas reiteradas e com suficiente sedimentação, poderão ser classificados como usos de comércio internacional.

Idêntica conclusão podemos tirar em relação aos INCOTERMS FOB e CIF.

Estes surgem logo em 1936, aquando da primeira versão dos INCOTERMS e são de utilização reiterada e normal nas vendas marítimas.

No caso do termo FOB, a sua utilização constitui uma prática reiterada das pequenas empresas exportadoras pelas mesmas razões anteriormente enunciadas, pelo que, em nosso entendimento, deverá, igualmente, integrar a categoria de usos do comércio internacional.

21.- Terminada que está esta breve incursão pelos INCOTERMS, estamos, assim, em condições de, socorrendo-nos deles como critério indiciário para a determinação da função desempenhada por um transitário numa concreta operação de transporte internacional de mercadorias por estrada, ou, por outras palavras, da qualidade por ele assumida num determinado contrato daquela natureza, apresentar as nossas conclusões.

Nesta conformidade, se o exportador/vendedor vendeu a mercadoria sujeita ao Incoterm EXW (Ex works) ou “FCA – Franco Transportador ponto designado”), através do qual o importador/comprador se obriga a celebrar, por sua conta, um contrato de transporte de mercadorias a partir da fábrica ou armazém do vendedor, no caso do EXW, ou do local combinado, no caso do FCA, na maioria das situações, [39] o transitário é contratado pelo seu cliente exportador, apenas para proceder a todas as operações e actos materiais  necessários à expedição da mercadoria e, nessa qualidade, a entregar a mercadoria ao transportador contratado pelo importador-comprador; no caso do Incoterm EXW, o próprio carregamento da mercadoria será da responsabilidade do comprador, 

Nesta situação, o transitário, em princípio, celebrará com o seu cliente, um contrato de comissão de expedição e como tal, no contrato de transporte, assinará a guia de transporte, em nome próprio, como expedidor contratual, embora por conta do expedidor real, circunstância que integra apenas o circulo interno da comissão de expedição.

Ao invés, se a venda for contratada de acordo com a cláusula “CPT (Porte Pago até …. (local de destino das mercadorias)” ou CIP (Porte Pago e Seguro até), tal significa que o vendedor, entre outras obrigações, assume a obrigação de pagar o preço do transporte da mercadoria até ao destino combinado.

Nesta situação o transitário, em regra, é contratado para transportar a mercadoria (por meios próprios ou de terceiros) obrigando-se a entregá-la ao destinatário. Aqui o transitário age como transportador, assumindo todos os direitos e responsabilidades que lhe são inerentes.

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  .


[1] Situação que alguma doutrina tem apelidado de transitário-transportador, vg. HUGO RAMOS ALVES, O singular caso do transitário-transportador, Temas de Direito dos Transportes, Vol. IV, M. JANUÁRIO DA COSTA GOMES COORD. No ordenamento jurídico alemão, a situação do transitário-transportador , corresponde à figura da “Selbsteintritt” (à letra, “auto-entrada”), encontra-se regulada no artº 458º do Código Comercial, HandelgesetzBuch – HGB, e verifica-se quando o transitário que, inicialmente, celebrou um contrato de expedição puro para se ocupar, apenas, de obter o transporte, posteriormente decide executá-lo (nele auto-entrando), através dos seus veículos próprios ou de um terceiro, ao invés de se manter na posição inicial de expedidor encarregue de contratar um transportador. Nesta situação, de acordo com artº 458º do HGB, a Convenção CMR aplicar-se-á ao transporte, se as partes tiverem previsto que o mesmo implique o atravessamento de fronteiras, cfr INGO KOLLER, Transportrecht, 2020 Verlag C.H. Beck oH,. pag 785 e segs e KARL-HEINZ THUME, Kommentar zur CMR, Deutscher Fachverlag GmbH, Fachmedien Recht und Wirtschaft. pags. 78 e segs

[2] Decreto-Lei nº 255/99, de 7 de Julho.

[3] A respeito da divisão dos contratos de compra e venda em contratos translativos e contratos obrigacionais vg. RAÚL VENTURA, O contrato de compra e venda no Código Civil, ROA, Ano 43, 1983, pag 594 que considera o contrato de compra e venda um contrato real “ex vi” do artº 879º, a) do CC.  No sentido de o contrato de compra e venda ser simultaneamente um contrato real e obrigacional, cfr. PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, Volume II, 4ª Edição revista e actualizada, Coimbra Editora, pag 162

[4] A primeira condição de aplicação da Convenção CISG consiste no facto de ambas partes terem estabelecimento em Estados Contratantes – artº 1º, 1, a); a segunda condição, por seu lado, verifica-se quando as regras de Direito Internacional Privado conduzirem à aplicação da lei de um Estado Contratante – artº 1º. 1,b).

Para este efeito, há que tomar em consideração o artº 4º, 1, a) do Regulamento (CE) n.º 593/2008 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 17 de Junho de 2008, sobre a lei aplicável às obrigações contratuais (Roma I) que prevê que “o contrato de compra e venda de mercadorias é regulado pela lei do país em que o vendedor tem a sua residência habitual”. Nesta conformidade, se o vendedor tiver o seu estabelecimento em Portugal, o regime aplicável ao contrato de venda internacional de mercadorias por ele celebrado, após a sua entrada em vigor em 01-10-2021, será o da Convenção CISG, enquanto lei em vigor na ordem jurídica interna, “ex vi” do artº 8º da CRP. A Convenção será igualmente aplicável se o comprador estiver estabelecido em Portugal e o vendedor tiver o seu estabelecimento noutro Estado Contratante- cfr artº1, 1, a).

[5] CATARINA MONTEIRO PIRES, O novo regime da venda internacional de mercadorias

a partir de outubro de 2021, Vida Judiciária, Março-Abril 202, nº 219, pag 48.

[6] Status: United Nations Convention on Contracts for the International Sale of Goods (Vienna, 1980) (CISG) | United Nations Commission On International Trade Law

[7] Na lei nacional, o nº 1 do artigo 2º do Decreto-Lei n.º 239/2003, de 4 de Outubro que aprovou o regime jurídico do contrato de transporte rodoviário nacional de mercadorias (LCTR), apresenta a seguinte definição deste tipo de contrato: “O contrato de transporte rodoviário nacional de mercadorias é o celebrado entre transportador e expedidor nos termos do qual o primeiro se obriga a deslocar mercadorias, por meio de veículos rodoviários, entre locais situados no território nacional e a entregá-las ao destinatário”. Esta definição merece-nos duas críticas: A primeira é a de que, certamente por lapso, o legislador nacional, ao invés do que se contem no nº1, do artº 1º da CMR, não incluiu na definição a remuneração como elemento nuclear caracterizador do contrato de transporte, embora esta lacuna possa ser integrada através de uma interpretação sistemática do diploma, na medida em que, pelo artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 145/2008, de 28 de Julho, foi  aditado um novo artigo 4.º-A, com a epígrafe “A Remuneração do contrato de transporte”, o que poderá ser entendido como uma rectificação restritiva (ou uma interpretação autêntica) do originário âmbito de aplicação material do Decreto-Lei n.º 239/2003 apenas aos transportes remunerados.. A segunda é a consideração, ínsita na definição, de que o contrato de transporte é um contrato bilateral e que, por conseguinte, o destinatário não é nele parte, concepção de que discordamos em absoluto, considerando que o destinatário, embora não desde o início, se torna parte no contrato de transporte quando a ele adere, aceitando a mercadoria que lhe é entregue pelo transportador e o segundo exemplar da guia de transporte que lhe é destinado. Neste sentido, vg FRANCISCO COSTEIRA DA ROCHA, O Contrato de Transporte de Mercadorias – Contributo para o Estudo da Posição Jurídica do Destinatário no Contrato de Transporte de Mercadorias, Ed. Almedina, 2000 que considera o contrato de transporte “um contrato trilateral e assíncrono” e MANUEL JANUÁRIO DA COSTA GOMES, O Direito de Variação ou de Controlo no Transporte de Mercadorias, Temas de Direito dos Transportes, Volume II, M JANUÁRIO DA COSTA GOMES (COORD), Ed. Almedina, pag. 52.

No sentido de que o contrato de transporte é um contrato de natureza trilateral, cfr os Ac. do Tribunal da Relação de Lisboa de 03.05.2012 Procº 43/09.9TNLSB.L1-6, Relator AGUIAR PEREIRA e de 22.06.2010, Procº 1/08.0TNLSB.L1.7, Relator ROQUE NOGUEIRA www.dgsi.pt

[8] CARLOS ALBERTO NEVES DE ALMEIDA, Do contrato de Transporte Aéreo e da Responsabilidade Civil do Transportador Aéreo, ed. Almedina., pag 22.

[9] Cfr os Acs do STJ, de 16.03.98 (“O contrato de mercadorias por estrada, é aquele em que alguém se obriga mediante retribuição a transferir por sua conta e responsabilidade, uma coisa de um lugar para outro, e a fazer a sua entrega no local de destino, revestindo uma natureza comercial, bilateral, oneroso, consensual e de resultado no âmbito dos artigos 366º a 392º do Código Comercial”), de 17.11.94, de 6.10.94, de 27.01.93 e de 25.02.93 (“O contrato de transporte é um contrato de resultado, no sentido de que o transportador pode efectuar o transporte por si, ou por empresa ou pessoa diversa”).

[10] Cfr o sitio www.treaties.un.org em 20-03-2021

[11] A este respeito, cfr. os Acs S.T.J de 25.02.93, Relator OLIMPIO DA FONSECA, procº nº 083084.17.11.94, Relator SOUSA INÊS, procº nº 084309, de 6.10.94, Relator COSTA MARQUES, procº nº 084580, Ac STJ 13 de Janeiro de 1999 Relator MACHADO SOARES, procº 98ªA797, de 25 de Novembro de 2003 Relator SALVADOR DA COSTA, procº 03B2370, de 9 de Julho de 2014, Relatora MARIA DO PRAZERES BELEZA, procº nº 7347/04.5TBMTS. PS.S1, todos em www.dgsi.pt

O segundo dos Acórdãos invocados, o S.T.J. é lapidar quanto à concepção adoptada relativamente à posição do transportador, quando, após definir o contrato de transporte, refere ser “indiferente a circunstância de não ser o segundo contraente (transportador) a efectuar o transporte pelos seus próprios meios, mas antes um terceiro”.

Tal aresto integra-se, de resto, numa corrente jurisprudencial de forte expressão que, para efeitos de definição de responsabilidades perante expedidor e destinatário, considera o transitário como um transportador, desde que se tenha obrigado a transportar mercadorias, não lhe sendo vedada a celebração e execução de contratos de transporte.

[12] Destacando a posição do transitário como auxiliar do expedidor ou do carregador, “ora assumindo as funções típicas do seu métier original de intermediário, quer enquanto representante do expedidor ou carregador, celebrando o contrato de transporte de que passa a ser parte, quer enquanto mandatário sem representação do mesmo expedidor, quer celebrando o contrato de transporte em nome próprio, mas por conta daquele.” vg. MANUEL JANUÁRIO DA COSTA GOMES, M., Sobre o Sistema próprio de Responsabilidade do Transportador de Mercadorias, ob. cit, pag 462

[13] ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, Introdução ao direito dos transportes, Revista da Ordem dos Advogados, Ano 2008, Ano 68, Volume I, Janeiro 2008. pag 33.

[14] JOÃO VALBOM BATISTA, O Contrato de Expedição, Temas de Direito dos Transportes, Volume II, (COORD. MANUEL JANUÁRIO DA COSTA GOMES), Almedina, pag. 240.

[15] MANUEL JANUÁRIO DA COSTA GOMES, Sobre a vinculação del credere, ob. cit., pag. 231, nota 146.

[16] PIRES DE LIMA E ANTUNES VARELA, in Código Civil Anotado, III, 4ª edição revista e actualizada, Coimbra Editora, pag. 825.

[17] JACQUES PUTZEYS, Le contrat de transport routier de marchandises, Ed. Bruylant, Bruxelles 1981, pag 32.

[18] ZUNARELLI. Origine ed evoluzione del probleme dell’individualizione dei soggetti responsabili del transporto – cit por FRANCISCO COSTEIRA DA ROCHA, ob. cit. pág.86.

[19] HUGO RAMOS ALVES, O singular caso do Transitário-Transportador, cit. pag 334, destacando neste sentido VITTORIA COZZI, La spedizione, FLAMINI, COZZI/LENZI, Transporto, spedizione, deposito, nolegio, Nápoles: Edizione Scientifiche Italiane, 2008, pags 189-190.

[20] CARNELUTTI, citado por FRANCISCO COSTEIRA DA ROCHA, ob cit, pág. 86

[21] JACQUES PUTZEYS, Le contrat de transport routier de marchandises, Ed. Bruylant, Bruxelles 1981, pag. 34 e segs, MANUEL CASTELLO-BRANCO BASTOS, Direito dos Transportes, Instituto de Direito das Empresas e do Trabalho, Caderno nº 2, pag. 80 e FRANCISCO COSTEIRA DA ROCHA, ob. cit, pag 87.

[22] NUNO MANUEL CASTELLO-BRANCO BASTOS, ob. cit, pag 80.

[23] JOÃO VALBOM BATISTA, O Contrato de Expedição, ob. cit, pag 234 e CAMILA HOYUELA, The Contract of Logistics under the Convention on the Contract for the International Carriage of Goods by Road, Temas de Direito dos Transportes – Volume IV, M. JANUÁRIO DA COSTA GOMES (COORD.), pag 45, onde se refere que na jurisprudência belga e holandesa o transitário é equiparado ao transportador, para efeitos da determinação da sua responsabilidade, se cobrar um preço “all –fee” e não uma comissão sobre o preço do transporte pago ao “performing carrier”, situação em que a sua responsabilidade já não será a do transportador. Cfr. ainda, no direito alemão, a figura da expedição a preço fixo (“Fixkosten”), cujo regime é equiparado ao do transportador pelo artº 459º do Código Comercial, HGB.

[24] JOÃO VALBOM BATISTA, O Contrato de Expedição, ob. cit, pag 233.

[25] ANDRÉ MARTINS REI, Da Natureza Jurídica dos Incoterms e sua Qualificação como Cláusulas Contratuais Gerais, Dissertação apresentada à Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra no âmbito do 2.º Ciclo de Estudos em Direito (conducente ao grau de Mestre), na Área de Especialização em Ciências Jurídico-Forenses, Universidade de Coimbra, 2017 pag 13.

[26] Analisando e decidindo sobre a questão da relevância do INCOTERM CIF quanto à questão do momento da transferência do risco de perdas e danos da mercadoria vg. a Sentença do U.S. District Court, Southern District, Texas, Houston Division, de 07-02-2006, Procº Civ. A. H-04-0912 em que eram partes China North Chemical Industries Corporation, como A. e Beston Chemical Corporation, como R, in https://iicl.law.pace.edu/cisg/case/united-states-state-minnesota-county-hennepin-district-court-fourth-judicial-district-6 .

Em resumo, o caso era o seguinte: Em Março de 1999, um vendedor chinês e um comprador americano celebraram um contrato para a venda de um certo número de paletes de detonação de cargas explosivas a serem entregues “CIF” em Berwick, Louisiana. Embora o contrato não especificasse como a carga deveria ser estivada a bordo, através de uma série de faxes e e-mails o comprador havia informado o vendedor sobre todos os requisitos que tinha de cumprir para evitar que a carga fosse danificada durante a viagem e para garantir a autorização de entrada nos EUA. Devido à pequena dimensão do navio mercante, não foi possível estivar a carga como exigido pelo comprador; no entanto, o vendedor conseguiu obter da companhia de navegação tanto a garantia de que a mercadoria não seria danificada como a emissão de um conhecimento de embarque limpo cobrindo a carga. À chegada ao porto de destino, verificou-se que a carga estava seriamente danificada devido a estiva inadequada; como resultado, o comprador recusou-se a pagar o preço ainda por pagar. O vendedor propôs então uma acção contra o comprador pedindo a condenação ao pagamento do preço total, acrescido de juros.

O Tribunal decidiu que a CISG era aplicável ao contrato em virtude do seu Artº 1, nº1, a). De seguida, a fim de avaliar se o vendedor era responsável pelos danos da carga durante a viagem, o Tribunal teve em conta o Incoterm CIF acordado entre as partes. Na opinião do Tribunal, tal cláusula tinha de ser interpretada no sentido fornecido pelos Incoterms de 1990 (a versão dos Incoterms em vigor no momento da celebração do contrato), sendo os Incoterms “a fonte predominante de definições das condições comerciais de entrega da mercadoria” e, como tal, devia ser considerada como integrada na CISG através do seu Artº 9, nº 2. Nesta conformidade, de acordo com o Incoterm CIF, o vendedor obrigava-se apenas a contratar o transporte e o seguro das mercadorias e a pagar os respectivos custos até ao porto de destino, enquanto que o risco de perda ou dano era transferido para o comprador quando as mercadorias tivessem passado a amurada do navio no porto de embarque. Consequentemente, o risco de danos na carga devido a carregamento e/ou estiva inadequados recaiu unicamente sobre o comprador. Também não foi provado que o vendedor tivesse assumido expressamente a obrigação de assegurar que a companhia de navegação estivava a carga de acordo com as exigências do comprador, nem que suportaria o risco de perda ou dano da carga depois de esta ter passado pela amurada do navio.

[27] BERNARD AUDIT, The Vienna Sales Convention and the Lex Mercatoria, Lex Mercatoria and Arbitration, Thomas E. Carbonneau, ed. rev. Juris Publishing, 1990, pags 173-194.

[28] ANDRÉ MARTINS REI, Dissertação…, ob. cit., pag 9 e ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, Direito Comercial, 3ª ed. revista e actualizada, Almedina, 2012, pp. 51-55.

[29] MARIA HELENA BRITO, Direito do Comércio Internacional, Almedina, 2004, pags 119-120, apud. ANDRÉ MARTINS REI, Dissertação…,andré  ob. cit., pag 12

[30] Um outro domínio no qual a CISG expressa o reconhecimento do princípio da liberdade contratual é o da liberdade das partes do contrato de compra e venda internacional poderem escolher a lei aplicável, afastando a aplicação da Convenção “in totum” (“opting out”) ou parcialmente, direito que vem consagrado no artº 6º: “As partes podem excluir a aplicação da presente Convenção ou, nos termos do disposto no artigo 12.º, derrogar ou modificar os efeitos de qualquer uma das suas disposições”

[31] Características que são próprias do costume internacional, cfr. “Remarks on the Manner in which the UNIDROIT Principles May Be Used to Interpret or Supplement CISG Article, Jorge Oviedo Albán October, 2004 https://iicl.law.pace.edu/cisg/page/use-unidroit-principles-help-interpret-cisg-article-9  

[32] Disposição cuja redação é muito semelhante à do Artº 1.8 dos princípios UNIDROIT.

[33] ANDRÉ MARTINS REI, Dissertação… ob. cit., pags 21 e segs.

[34] Neste sentido, na doutrina nacional, cfr. LUIS DE BRITO CORREIA que rejeita a sua natureza de usos comerciais, indo mais longe e considerando os Incoterms como normas internacionais de fonte não estadual, maselaboradas por associações internacionais de comerciantes, Direito Comercial, 1º Vol., AAFDL, 1987, pp. 104 e 105, ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO que rejeita a sua força vinculativa geral e obrigatória quando não inserdos em contratos individuais, Direito Comercial, op. cit., pag. 799 e na doutrina estrangeira, ZUNARELLI, Stefano e PINTO, Michele M. Comenale, Manuale di Diritto della Navigazione e dei Trasporti, CEDAM, 2009, pag. 415.

[35] Cfr. entre nós, COUTINHO DE ABREU, Curso de Direito Comercial, Vol. I, 9.ª ed., Almedina, 2013, p. 38, ENGRÁCIA ANTUNES, Direito dos Contratos Comerciais, Almedina, 2015, pags 59 e 64, ANTÓNIO MARQUES DOS SANTOS, As Normas de Aplicação Necessária e Imediata no Direito Internacional Privado – Esboço de uma Teoria Geral, I Volume, Coimbra, Almedina, 1991, pag. 661e, na doutrina internacional, FRÉDÉRIC EISEMANN e YVES DERAINS (La pratique des Incoterms, 3e édition, E. J. A. Jupiter, 1988, pags. 5 e 6), ALFONSO CALVO CARAVACA e Javier Carrascosa González (Ley aplicable al contrato internacional, in Curso de Contratación Internacional, Editorial Colex, 2006, p. 75), HUGUES KENFACK (Droit du commerce international, 5e édition, Dalloz, 2015, p. 12) e GIUDITTA CORDERO-MOSS, International Commercial Contracts: Applicable Sources and Enforceability, Cambridge University Press, 2014, pag. 38.

[36]Cfr., respectivamente, Acórdão do STJ, de 22-09-2016, Proc. 2561/14.8T8BRG.G1.S1 (Salazar Casanova), in www.dgsi.pt e Acórdão do TJUE, de 09-06-2011, Proc. C-87/10 (Endre Juhász), in www.curia.europa.eu  .

[37] LUIS LIMA PINHEIRO, Incoterms – Introdução e traços fundamentais, in ROA, Ano 65, Vol. II, 2005, pag. 318, ANDRÉ MARTINS REI, Dissertação…, ob cit. pag. 25 e ANTÓNIO JUZARTE ROLO E ANDRÉ REI, O comércio internacional e os Incoterms … ob. cit., Vida Judiciária, nº 291, Março/Abril 2021, pag 20.

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[38]  A exportação destes produtos é feita sempre por camião, uma vez que, comparado com o caminho de ferro, é o meio de transporte mais barato e que assegura a prestação de um serviço de transporte mais flexível porta a porta, desde a fábrica do produtor ou do armazém do transitário, directamente até ao armazém do destinatário ou do transitário receptor. O transporte rodoferroviário está condicionado a uma estrutura fixa e  à existência de terminais ferroviários de carregamento e descarga, inexistentes em Portugal  e que representam investimentos muito elevados, não dispensando o transporte rodoviário nos segmentos inicial e termina. Por estas razões o transporte ferroviário de mercadorias representa, em Portugal, uma pequeníssima percentagem do total de mercadorias transportadas e a sua vocação centra-se no transporte de grandes massas a grandes distâncias. Segundo alguns estudos, o transporte rodo-ferroviário só se torna rentável a partir dos 600-700 km.

[39] Salvo se outra qualificação se retirar da que o Transitário tiver assumido na guia de transporte. Com efeito, nos termos do artigo 9.º, nº 1 da CMR, a guia de transporte, faz fé, até prova em contrário, das condições do contrato de transporte, nomeadamente da identidade das suas partes.