Joana Martins Cavaco

Advogada, em Prática Individual, com escritório em Faro.

Mestre em Direito Público (2019) e Licenciada em Direito (2016) pela Nova School of Law.


A secção Novos Talentos do Observatório Almedina é dedicada à divulgação de artigos de jovens talentos do mundo jurídico. O presente artigo foi baseado na tese preparada pela autora no âmbito do Mestrado em Direito da Nova School of Law (link para tese).


Antes de entrarmos na questão da não equiparação do correio eletrónico relativamente à correspondência tradicional importa atentar alguns conceitos.

Por correspondência deve entender-se toda a troca, por norma, privada[1] de informação entre duas pessoas.

“A comunicação, diferentemente da informação, pressupõe uma relação de intersubjetividade, na qual o propósito é transmitir uma mensagem”[2].

Se, antes, a correspondência por excelência era a carta, com a evolução dos tempos, esta tem dado lugar ao correio eletrónico, cujo processo se realiza de um modo diferente.

Isto significa que não está em causa a consideração do correio eletrónico como uma forma de comunicação, mas apenas a discordância com a sua equiparação legal à correspondência tradicional.

Várias são as posições da doutrina quanto a esta questão que contribuem, por um lado, para o esclarecimento do nosso pensamento, mas por outro, para alguma confusão, o que acaba por se refletir tanto na interpretação como na aplicação da lei pelos tribunais.

1. As várias posições da doutrina

Tem-se defendido que o correio eletrónico a partir do momento em que é recebido e alocado num sistema informático, independentemente de ter sido aberto ou não, terá o valor probatório equivalente ao de um mero documento e, por essa razão, o meio de obtenção de prova que deverá ser utilizado é a apreensão de documento, previsto nos artigos 164.º e seguintes do CPP. [3]

Com base nesta corrente, verifica-se que, de certa maneira, o artigo 17.º da Lei n.º 109/2009, de 15 de setembro (adiante designada por Lei do Cibercrime) não teria qualquer aplicação na realidade, uma vez que, quando o correio está em curso aplica-se o artigo 18.º da Lei do Cibercrime e assim que é rececionado pelo destinatário aplica-se o regime da apreensão de documentos.

Ainda dentro desta corrente, existe alguma divergência quanto à natureza do correio eletrónico. Se uns consideram que a equiparação à carta tradicional fica, completamente, enviesada porque o correio eletrónico tem uma natureza imaterial e, por isso, a sua eliminação não tem as mesmas consequências que a eliminação de uma carta[4], outros defendem que a mensagem de correio eletrónico pode ser arquivada e eliminada tal como a carta tradicional[5].

Sob outra perspetiva, tem-se rejeitado a equiparação em qualquer momento, ou seja, quer quando ainda é comunicação, quer quando já se considera ficheiro em formato digital. Sendo que o momento em que se considera que a comunicação termina é posterior ao defendido pela corrente anterior. Neste caso, o fator determinante não será a receção da mensagem, mas sim o “pleno domínio do destinatário, sendo por este conhecida”[6].

Esta corrente nega a inclusão do correio eletrónico, enquanto meio de comunicação eletrónico, no n.º 1 do artigo 179.º do Código de Processo Penal (adiante designado por CPP), onde se refere “qualquer outra correspondência”.

Alerta-se, ainda, para a criação de vários obstáculos à investigação se aplicarmos o regime do artigo 179.º do CPP, como o facto de se exigir que o juiz seja o primeiro a tomar conhecimento do conteúdo da correspondência apreendida. Pensemos, por exemplo, numa investigação em que existem centenas de mensagens de correio eletrónico que têm de ser conhecidas e selecionadas por uma única pessoa e nas consequências negativas que tal exigência poderá trazer para a investigação.

Inclusivamente, podem surgir impossibilidades fácticas resultantes da natureza do correio eletrónico. Quando o juiz considera que as mensagens não têm relevância para o processo, a devolução que é exigida pelo n.º 3 do artigo 179.º não é possível quando estão em causa mensagens de correio eletrónico, uma vez que o acesso à conta é vedado e “não se pode restituir correspondência virtual que foi gravada para ser levada ao juiz, mas que, no fundo, nunca saiu do computador/espaço virtual onde se encontrava”[7].

No caso de o visado ser o remetente da mensagem, ainda que se apreendam as mensagens por ele enviadas, não se poderá impedir que o respetivo destinatário tenha acesso às mesmas e que possa afetar a comunicação e, em consequência, inviabilizar a investigação.

Existem, ainda elementos, que não fazem parte do conteúdo da correspondência tradicional, mas que se revelam essenciais para a boa prossecução da investigação e para a descoberta dos factos como a identificação do equipamento de telecomunicação, a sua localização, a data, a hora, os chamados dados de base e de tráfego.

Enquanto na correspondência tradicional a ingerência de terceiros termina com a colocação da carta na caixa de correio, no caso do correio eletrónico, mesmo que a mensagem já tenha sido recebida e até lida pelo destinatário, esta continua acessível ao operador de comunicações eletrónicas.

2. Posição adotada

Se atentarmos na definição de correio eletrónico presente na Diretiva n.º 2002/58/CE, não encontramos qualquer referência ao conceito de correspondência, o que poderá demonstrar que não deve estabelecer-se qualquer equiparação ou aproximação à correspondência tradicional.

O correio eletrónico, quer do ponto de vista técnico, pelas suas características e pela forma como se processa, quer do ponto de vista jurídico, pelas exigências e especificidades na sua obtenção, embora seja também uma forma de comunicação que é protegida pela Constituição da República Portuguesa (adiante designada por CRP), tal como a correspondência tradicional, não é, de todo, idêntico a esta.

A mensagem e o seu conteúdo merecem a proteção constitucional atribuída à correspondência e a outros meios de comunicação. Ainda assim, a danosidade causada pelo acesso ao correio eletrónico é, completamente, diferente daquela que se gera quando acedemos a uma carta tradicional.

Quanto à sua natureza, a correspondência tradicional caracteriza-se por ser “um objeto, corporizado e fechado quando remetido e no caso, para efeitos desta discussão, estar fechada quando o executor da diligência a encontra, seja no decurso de uma busca, ou mesmo de uma revista”[8]. Em contrapartida, o correio eletrónico “nunca é, nem nunca está “fechado””[9] e “nem é o facto de uma mensagem electrónica deixar de estar em trânsito e de se fixar num sistema informático e poder por isso ser guardada ou destruída, que a caracteriza como correio em sentido tradicional: a sua natureza imaterial também a torna diferente da primeira”[10].

A doutrina maioritária parece apontar no sentido de o correio eletrónico “dever ser tratado em Direito Processual Penal como correspondência tradicional e dever, por isso, merecer os mesmos efeitos legais, mormente o de ter de ser o JIC a primeiro a tomar conhecimento do conteúdo do correio electrónico que se encontre num sistema informático”[11].

O que está em causa é a garantia da proteção dada pela CRP ao sigilo da correspondência e de outros meios de comunicação, onde consideramos dever integrar-se o correio eletrónico.

Mas não só, está também em causa o direito à reserva da intimidade da vida privada, uma vez que, como já referimos, anteriormente, há uma maior e mais lesiva intromissão quando se acede ao correio eletrónico do que quando se acede a uma carta isolada.

Pretende-se proteger a própria comunicação e o conteúdo dela resultante, assim como os direitos fundamentais das pessoas nela envolvidas.

Em suma, o correio eletrónico é um meio de comunicação eletrónico que merece a proteção constitucional atribuída pelo artigo 34.º da CRP. Todavia, isso não significa que do ponto de vista legal, a sua conceção deva corresponder a uma equiparação, tout court, à correspondência tradicional.

O facto de existir uma remissão legal para o regime da correspondência na sua obtenção, também não significa que se deva equiparar, sem mais, o correio eletrónico à correspondência.

3. Conclusões

Não obstante parte da doutrina rejeitar a equiparação, tal não significa que não estejamos no domínio da correspondência ou das comunicações que merecem a tutela constitucional, pela ingerência na privacidade e nas comunicações.

E ainda que a tutela constitucional seja a mesma, a que se encontra no artigo 34.º da CRP, a sua concretização traz exigências diferentes consoante a forma de correspondência ou comunicação que está em causa.

Na definição de correio eletrónico presente na alínea h) do artigo 2.º da Diretiva n.º 2002/58/CE de 12 de julho de 2012 não há qualquer referência ao conceito de correspondência tradicional o que demonstra que não deve existir qualquer equiparação.

Na verdade, consideramos que o facto de existir uma definição do conceito de correio eletrónico, mostra que este deve ser autonomizado relativamente à correspondência tradicional.

A própria forma como a comunicação se processa, as características que apresenta, pela forma como é realizada mostra que, embora sejam formas de comunicação, a correspondência tradicional e o correio eletrónico não são idênticos e o acesso aos mesmos procede-se de formas, totalmente, distintas.

Importa ter em consideração, principalmente, a natureza das formas de comunicação em causa que, neste caso, justificam o tratamento diferenciado do ponto de vista legal.

A correspondência tradicional respeita a uma realidade material, palpável, que está efetivamente fechada quando ainda está em curso.

Por outro lado, o correio eletrónico corresponde a uma realidade digital e imaterial e, por essa razão, não se encontra efetivamente fechada ou aberta, mesmo quando ainda está em trânsito, inclusive porque o seu processo de transmissão está dependente da autorização do servidor do programa de correio eletrónico utilizado que tem acesso à informação que é transmitida, nomeadamente para decidir quanto à permissão de transmissão.

Tendo em consideração a materialidade da primeira e a imaterialidade da segunda a sua destruição tem consequências práticas bastante diferentes.

“A doutrina maioritária aposta no sentido de o correio-electrónico dever ser tratado em Direito Processual Penal como correspondência tradicional e dever por isso merecer os mesmos efeitos legais, mormente o de ter de ser o JIC o primeiro a tomar conhecimento do conteúdo do correio electrónico que se encontre num sistema informático”[12].

Acolhemos a posição de quem afirma que várias foram as oportunidades nas reformas, quer da lei substantiva, quer da lei processual para proceder a uma equiparação legal de ambas as formas de comunicação, mas tal não aconteceu e isso demonstra que não deve existir uma verdadeira equiparação.[13]

Aliás, o facto de não se ter incluído o correio eletrónico no artigo 179.º do CPP e ter-se criado um artigo autónomo demonstra que, ainda que possa existir uma remissão legal no regime estabelecido, não deve existir uma equiparação entre os dois meios de comunicação.

 A realidade adjacente à criação do regime previsto no artigo 179.º do CPP revela-se bastante diferente da realidade em que se insere o correio eletrónico.

“A apreensão de um e de outro não afectam exactamente os mesmos direitos fundamentais e existem diferenças substanciais entre o correio corpóreo e as mensagens de correio electrónico e, consequentemente, com o campo de aplicação do artigo 179.º e do artigo 17.º da LC”[14].

Nota:

O presente artigo foi redigido segundo as regras do Novo Acordo Ortográfico.

As citações diretas seguem o acordo adotado pelos respetivos autores.


[1] Embora possamos ter também correspondência pública como é o caso da carta aberta, todavia, este tipo de comunicação não estará abrangido pela tutela da correspondência.

[2] Neves, Rita Castanheira – As ingerências nas comunicações eletrónicas em processo penal. Coimbra: Coimbra Editora, 2011, p. 15.

[3] Cfr. Bravo, Rogério – “Da não equiparação do correio-electrónico ao conceito tradicional de correspondência por carta”. Polícia e Justiça. Coimbra: Coimbra Editora, 2006. N.º 7 (jan.jun. 2006) III Série, p. 209 e Verdelho, Pedro – “Apreensão de correio electrónico em Processo Penal”. Revista do Ministério Público. Ano 25. N.º 100 (outubro/dezembro 2004), p. 158 e 159.

[4] Bravo – Polícia, 2006. N.º 7 (jan.jun. 2006) III Série, p. 212 e 214.

[5] Verdelho – RMP. Ano 25. N.º 100 (outubro/dezembro 2004), p. 157 e 158.

[6] Neves – As ingerências, p. 187.

[7] Neves – As ingerências, p. 185.

[8] Bravo – Polícia, 2006. N.º 7 (jan.jun. 2006) III Série, p. 212.

[9] Ibidem.

[10] Ibidem.

[11] Idem, p. 207 e 208.

[12] Bravo – Polícia, 2006. N.º 7 (jan.jun. 2006) III Série, p. 207 e 208.

[13] Idem, p. 210.

[14] Cardoso, Rui – “Apreensão de correio electrónico e registos de comunicações de natureza semelhante – artigo 17.º da Lei n.º 109/2009, de 15.IX”. Revista do Ministério Público. Ano 39. N.º 153 (jan -mar 2018), p. 199.