Catarina Azevedo Fernandes

Advogada. Pós-graduada em Direito Intelectual pela Escola do Porto da Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa. Mestre em Negócios e Empresas pela Escola do Porto da Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa. Licenciada em Direito pela Escola do Porto da Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa.


A secção Novos Talentos do Observatório Almedina é dedicada à divulgação de artigos de jovens talentos do mundo jurídico. O presente artigo foi baseado na tese preparada pela autora no âmbito do Mestrado em Negócios e Empresas da Universidade Católica Portuguesa (Porto). Tese disponível neste link.


Perante o paradigma dos agentes económicos e dos mercados cada vez mais competitivos e inovadores, a propriedade industrial assume um papel de destaque em virtude do fenómeno da globalização e das novas tecnologias. Assim, cada vez mais, a propriedade industrial é entendida como sendo um elemento determinante para a competitividade e crescimento das empresas, tendo os seus responsáveis a clara noção de que inovar é essencial e, bem assim, que proteger a inovação é o que realmente pode garantir o retorno económico. Prova disso é que, segundo os resultados estatísticos do Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI), no 1.º semestre de 2021 os pedidos de marcas, dos logótipos e dos outros sinais distintivos do comércio (OSDC) foram a modalidade de Direitos de Propriedade Industrial (DPI) em Portugal com maior procura junto do Instituto. Neste período – não obstante a situação pandémica que impactou Portugal e que melindrou o crescimento da economia – verificou-se um acréscimo de 34,8% dos pedidos (13.930) comparativamente com o período homólogo de 2020, sendo que, no que respeita ao número de concessões, também se verificou um crescimento, desta feita, de 26,0% (10.179), igualmente em face aos primeiros seis meses do ano transato (8.078).

Uma vez que o Direito de Marcas constitui uma ferramenta essencial do sistema de concorrência leal, a sua regulamentação é um assunto de particular relevo no seio da União Europeia (UE) que, fruto da necessidade de reforma, criou a Diretiva (UE) 2015/2436 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16/12, que aproxima, em matéria de marcas, as legislações dos Estados Membros (EM) e que, por sua vez, visa modernizar os sistemas já existentes e simplificar o acesso à proteção das marcas, de forma a impulsionar o empreendedorismo e o crescimento, em geral, da União e, em particular, das empresas (DHM). Juntamente com este diploma há que considerar ainda o (i) Regulamento (UE) 2017/1001, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 14/06, sobre a marca da UE (RMUE); (ii) o Regulamento Delegado (UE) 2018/625, da Comissão, de 5 de março de 2018 que o complementa e (iii) o Regulamento de Execução (UE) 2018/626, da Comissão de 5 de março de 2018, que estabelece as regras de execução de determinadas disposições do primeiro.

Especificamente, no que respeita às exigências de representação dos sinais a registar como marca, é de salientar a Comunicação Comum sobre a representação de novos tipos de marcas adotada pelos EM que, não tendo caráter vinculativo, visa facilitar o processo de transposição da DM e fomentar a aplicação uniforme das suas disposições.

A confluência destes diplomas subjaz ao novo Código da Propriedade Industrial (DL n.º 110/2018, de 10 de dezembro, doravante CPI) que iniciou a sua vigência em 1 de julho de 2019 e que acarretou mudanças significativas. Entre elas – no que respeita ao direito de marcas, a mudança que consideramos ser mais digna de nota – está a eliminação do requisito da representação gráfica, agora substituída pela exigência de representação que permita determinar de modo claro e preciso o objeto de proteção conferido ao seu titular, com recurso à tecnologia geralmente disponível (cfr. considerando 13 e artigo 3.º alínea b), ambos da DHM e artigo 208.º do CPI).

Assim, o artigo 208.º do CPI define marca como “um sinal ou conjunto de sinais suscetíveis de representação gráfica (…) ou por um sinal ou conjunto de sinais que possam ser representados de forma que permita determinar, de modo claro e preciso, o objeto da proteção conferida ao seu titular, desde que sejam adequados a distinguir os produtos ou serviços de uma empresa dos de outras empresas”. O que significa que, além das marcas nominativas/verbais (i.e., palavras, incluindo nomes de pessoas/ localidades, letras, números …), figurativas (i.e., desenhos, símbolos, emblemas, rótulos …) e mistas (que conjugam elementos nominativos e figurativos) – que habitualmente se designam por marcas tradicionais – são registáveis marcas, ditas não tradicionais ou não convencionais, quando respeitem os requisitos da capacidade distintiva e da determinabilidade.

Considerando o estado da arte atual, entendemos que esta alteração não se consubstanciou, pelo menos até então, num alargamento do leque de sinais protegíveis, tendo significado, outrossim, uma inquestionável simplificação do procedimento do registo de alguns sinais não tradicionais. São eles os sinais sonoros (constituído por um som ou combinação de sons), de multimédia (constituídos pela junção de imagem e som e, eventualmente, de outros elementos), de holograma (marcas figurativas com um caráter tridimensional que podem incluir movimento) e de movimento (compostos, como o nome indica, por um movimento ou por uma alteração na posição dos demais elementos que a integram) – cuja representação, em pedidos de registo apresentados por via eletrónica, é admitida, de acordo com informação do INPI,  nos seguintes formatos: (i) marca de som: JPEG e MP3; (ii) marca de movimento: JPEG e MP4; (iii) marca de multimédia: MP4; (iv) marca de holograma: JPEG e MP4. Neste âmbito, importa destacar que o primeiro pedido de registo de marca sem recurso a representação gráfica foi apresentado junto do INPI, poucos meses depois da entrada em vigor do CPI, especificamente em 16 de agosto de 2019. O pedido em questão (n.º 628854), foi apresentado por uma empresa portuguesa que dedica a sua atividade à inteligência artificial (Agentifai, Lda.) e consiste numa marca de movimento, que se destina a identificar uma vasta diversidade de produtos e serviços inseridos nas classes 9, 35 42 e 45 da Classificação de Nice. O pedido foi publicado no Boletim da Propriedade Industrial (BPI) de 20 de setembro de 2019, onde é possível encontrar – no campo disponível para a reprodução do sinal – um link para reprodução do ficheiro MP4 apresentado pela requerente (cfr. pág. 12 de 72, do BPI n.º 2019/09/20). Não fosse a alteração legislativa e a requerente teria que apresentar uma série de imagens estáticas, capazes de capturar o movimento.

Posteriormente, outros pedidos foram apresentados sem recurso à representação gráfica, como, por exemplo, o pedido de registo nacional (n.º 668383) apresentado pela Intel Corporation, com recurso a um ficheiro MP3 (cfr. pág. 18 de 74, do BPI n.º 2021/07/14) – e não mediante a apresentação uma pauta musical, como exigido pela legislação anterior.

Isto posto, não obstante os dados estatísticos demonstrarem que os requerentes em Portugal têm preferido o registo de sinais do tipo nominativo e misto, acreditamos que não tardará até que as marcas de movimento, sonoras e de hologramas conquistem os requerentes e se multipliquem, acompanhando as tendências de registo de marcas do Instituto da Propriedade Intelectual da União Europeia (IPIUE). Desde logo porque se antevê que as marcas convencionais se venham a saturar pela finitude do abecedário e dos algarismos e, para além disso, crê-se que os requerentes fiquem cada vez mais “reféns” dos avanços tecnológicos.

Para além dos sinais não tradicionais vindos de referir, não podem ser desconsiderados os sinais tridimensionais (que correspondem a um objeto definido em três dimensões), de cor per se (cor em si mesma, sem contornos), de posição (marcas que visam a aplicação de elementos figurativos ou tridimensionais à superfície de um produto) e de design retail store (configuração de uma loja). Ademais, no que respeita aos sinais não tradicionais catalogados como sensoriais ou não visíveis em si mesmos – para além das marcas sonoras a que já nos referimos – não podemos olvidar os sinais olfativos [1], tácteis [2] e gustativos.

No nosso Direito de Marcas vigora o princípio da liberdade na composição, pese embora a existência de limites intrínsecos (respeitantes ao sinal em si mesmo) e extrínsecos (relacionados com a existência de direitos anteriores). Assim, atento o objeto deste artigo, cingir-nos-emos a fazer uma análise crítica, ainda que en passant, de um dos limites intrínsecos que se impõem: a necessidade de representação. Ao contrário do requisito da capacidade distintiva que é de primeira ordem, de tipo material e se baseia na função da marca, a representação gráfica é um requisito formal, objetivo e funcional, que apenas atende à dinâmica do registo.

Desta feita, como ponto de partida, importa destacar que este requisito se justifica essencialmente por duas ordens de razão: uma técnica, na medida em que ajuda à apreciação do pedido de registo pela entidade competente e a sua publicação; e outra jurídica, uma vez que é necessária para delimitar o objeto de proteção conferido à marca (sendo certo que, relembre-se, o registo é pensado para ser consultado por “todos” e, nessa medida, deve garantir-se que seja inteligível por leigos).

Retomando o já enunciado, com a remodelação que o CPI operou no Direito de Marcas, o preenchimento deste requisito formal tornou-se, pelo menos aparentemente, mais fácil para os requerentes. Dizemos aparentemente pois, se relativamente a alguns sinais a mudança e a agilização inerente do procedimento de registo foi inquestionável, para outros (os sensoriais) mantem-se a dificuldade de dar cumprimento ao escopo do registo. Isto porque, pese embora o quadro legal do CPI ostente ser mais permissivo, a verdade é que há ainda fortes resquícios da doutrina restritiva que o Tribunal de Justiça (CE) fixou no caso Sieckmann [3], onde se definiram sete características a preencher para que o limite da representação gráfica se considerasse ultrapassado: clareza, precisão, completude, fácil acessibilidade, intangibilidade, durabilidade e objetividade. A este título, atente-se no considerando n.º 13 da DHM e no n.º 10 do RMUE, que dão total amparo à doutrina vinda de referir.

No atual quadro legal, o legislador optou por fazer menção apenas aos critérios da clareza e precisão (artigo 3.º, al. b) da DHM, 4.º, al. b) do RMUE e 208.º do CPI). No entanto, a ocorrência e verificação dos critérios Sieckmann tem de ser simultânea, o que faz com que aquilo que devia ser uma verdadeira alteração legislativa possa ser percecionado por alguns como uma mera substituição terminológica. Pois, sem embargo do facto de o legislador ter optado por não colocar na letra da lei os demais critérios Sieckmann, não devemos esquecer que a verificação da clareza implica que a representação seja completa, de fácil acessibilidade e objetiva e, por outro lado, que a verificação da precisão pressupõe que a representação seja intangível e duradoura.

Isto posto, presumimos que se estejam a interrogar como é que deve ser entediada esta alteração de paradigma. Deve o enfoque ser conferido ao teor literal da norma ou à ratio legislativa?

Quanto a este ponto, salvo melhor entendimento, cremos que os 7 critérios Sieckmann não podem ser desconsiderados nem, tampouco, dissociados. Porém, a sua interpretação terá que ser repensada e flexibilizada, sempre com a ressalva de que têm de ser consideradas as atuais especificidades e a necessidade de não ser negligenciada a segurança jurídica e o sistema de registo – tudo isto para que não se esvazie o sentido de mudança.

Aqui chegados, com o devido respeito e salvo melhor entendimento, atrevemo-nos a fazer alguns reparos ao legislador português no que ao artigo 208.º do CPI diz respeito. É nosso entendimento que o legislador nacional – tendo tido algum tempo para o fazer e atendendo à heterogeneidade dos membros que compuseram o grupo de trabalho de revisão do CPI – podia e devia ter sido mais atento e rigoroso na transposição da DHM, bem como podia ter adotado uma técnica legislativa singela, a fim de simplificar a norma. Por exemplo, entendemos que seria vantajoso se se procedesse à eliminação do vocábulo “gráfica” e, consequentemente, se retirasse a enunciação exemplificativa (atente-se no advérbio “nomeadamente”) que se segue (“palavras, incluindo nomes de pessoas, desenhos, letras, números, sons, cor, a forma do produto ou da respetiva embalagem”) e a disjunção (“ou”) que só confunde o intérprete. Ademais, cremos que a ordem da disposição também deveria ser modificada, por forma a que fosse destacado o requisito da capacidade distintiva que é de tipo material. Uma outra questão que pode ser levantada quanto à norma aqui em crise tem que ver com o facto de o legislador a ter “assombrado” com dois conceitos indeterminados (clareza e precisão) que só poderão ser materializados caso a caso e que, assim sendo, poderão conduzir a subjetividades e a algumas disparidades de tratamento por parte do Instituto.

Assim, a serem consideradas as sugestões enunciadas, a norma passaria a revestir a seguinte forma:

“Artigo 208.º – Constituição da marca

A marca pode ser constituída por um sinal ou conjunto de sinais que sejam adequados a distinguir os produtos ou serviços de uma empresa dos de outras empresas, desde que possam ser representados de forma que permita determinar, de modo exato, o objeto da proteção conferida ao seu titular.”.

Por último, volvidos pouco mais de dois anos da entrada em vigor do CPI, o nosso balanço é de que a evolução, apesar de positiva, tem sido tímida, quer no que respeita aos requerentes que não se têm atrevido a apresentar pedidos de registos de sinais sensoriais, quer da parte dos tribunais, institutos (nacionais e da UE) da propriedade industrial, doutrina e jurisprudência que certamente serão muito prudentes na análise e na admissibilidade dos pedidos de registo daqueles sinais. Isto porque, os aromas e os sabores constituem bens imateriais que, pela sua natureza, não se compadecem com os direitos de exclusivo atribuídos pelo registo e, por outro lado, aos obstáculos que os sinais sensoriais enfrentam no que respeita à representação, soma-se o problema da reduzida capacidade distintiva e o problema da superação do princípio que a doutrina comummente designa como “imperativo da disponibilidade”.

[1] Em 11/02/1999, o IHMI (anterior designação do IPIUE) concedeu o pedido referente a uma marca olfativa para bolas de ténis com “the smell of fresh grass”, graficamente representada por esta descrição verbal e com a menção de que se tratava de uma marca olfativa (cfr. Processo n.º R-156/1998-2, marca comunitária n.º 428870). Surpreendentemente este registo caducou a 11/12/2006, por falta de renovação.

[2] Quanto a esta categoria importa assinalar um registo alemão, concedido em 2004 (marca n.º 30259811), que consiste na marca “Underberg” em braille, para cervejas e outras bebidas alcoólicas.

[3] Ac. do TJ(CE), de 12/12/02, proc. n.º C-273/00, entre Ralph Sieckmann e Deutsches Patent- und Markenamt (Ac. Sieckmann). Ralf Sieckmann apresentou no Instituto Alemão de Patentes e Marcas um pedido de registo de uma marca olfativa de cianato de metilo (éster metílico de ácido de canela), descrita através da sua fórmula química estrutural (C6H5-CH=CHCOOCH3), de uma amostra e da descrição de que o aroma é habitualmente reconhecido como “balsâmico-frutado com ligeiras notas de canela”. O instituto indeferiu o pedido com o argumento de que existiam dúvidas relativamente à capacidade distintiva da marca e quanto à sua possibilidade de representação gráfica. Do indeferimento, Sieckmann recorreu para o Tribunal Federal de Patentes que, perante a dúvida, levou a questão ao TJ(CE) para que este esclarecesse qual a interpretação a dar ao artigo 2.º da DM de 1988.