José Carlos Marques Durão


Licenciado em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Curso Especialização em Direito Administrativo, pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Autor de diversos artigos sobre temas relativos à contratação pública, publicados em revistas jurídicas. Profissionalmente exerce funções de apoio jurídico, no setor público, predominantemente no âmbito da contratação pública.


A “bazuca europeia” está a chegar. Vem aí muito dinheiro. Em breve será a hora da colossal responsabilidade do seu bom uso. Dinheiro público. Um bem que é de todos. São estes os seus donos e destinatários. Em seu benefício deverá ser rigorosamente aplicado.

As compras públicas irão ter um papel decisivo para o sucesso do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR). Revelador da sua importância, recentemente, através da Lei n.º 30/2021, de 21 de maio, foram aprovadas medidas especiais de contratação pública.

Constata-se, neste regime especial, que o legislador optou por aligeirar e simplificar a tramitação dos procedimentos pré-contratuais, em alguns aspetos de forma significativa face às regras do regime geral contidas no Código dos Contratos Públicos (CCP). Nomeadamente, redução prazos, aumento do valor dos contratos para adoção dos procedimentos, dispensa de algumas formalidades. A Lei 30/2021, em contrapartida, almejando um clima de transparência e imparcialidade, reforça os meios de fiscalização. Criou uma entidade designada por “comissão independente” que irá acompanhar os procedimentos adotados e a celebração e a execução dos respetivos contratos.

Existe o receio de que estas medidas especiais da contratação pública possam propiciar situações de favoritismo. O surgimento de compras diretas aos mesmos operadores económicos de forma reiterada constitui uma preocupação. Na verdade, o perigo existe. É expectável que as aquisições venham a ser dominadas pela adoção de procedimentos adjudicatórios “fechados”.

 O ajuste direto e a consulta prévia (prefiro os nomes de batismo para evitar equívocos) são procedimentos nos quais só participam os operadores económicos que forem convidados a apresentar proposta. São as entidades adjudicantes que escolhem. E quando optarem por 1 ou 5 significa que todos os outros ficarão de fora. Não é coisa pouca o poder que está nas mãos das entidades adjudicantes. Facilmente se enxergam enormes consequências das decisões que tomarem. É por estes motivos que as entidades adjudicantes devem explicar as razões da escolha de determinado operador económico.

Quando não estão justificadas as razões dos convites frequentes aos mesmos, as entidades adjudicantes estão a afastar da escolha ilegitimamente os restantes operadores económicos. É certo que estes não obtêm um direito absoluto a serem convidados, mas a situação exige que seja ponderada a possibilidade da sua participação nos respetivos procedimentos adjudicatórios, mormente à luz do princípio da concorrência e do princípio da igualdade de tratamento e da não-discriminação.

A reflexão anterior remete-nos também para a necessidade das entidades adjudicantes variarem a escolha dos operadores económicos. Sublinhe-se, porém, que diversificar não é alargar o número de convidados, a ponto de tornar o procedimento adjudicatório inviável ou inútil. O objetivo é dar oportunidade aos demais. Quebrar o cenário de adjudicações sucessivas aos mesmos operadores económicos. Uma vez mais com fundamento na adoção de boas práticas na contratação pública, ao abrigo dos seus princípios gerais. E quanto a estes, o legislador é perentório: “Na formação e na execução dos contratos públicos devem ser respeitados os princípios (…)”, ex vi n.º 1 do art.º 1.º-A do CCP.

Por conseguinte, concordo inteiramente com a posição defendida na doutrina por Miguel Assis Raimundo, professor da Faculdade de Direito de Lisboa, que sustenta a necessidade de fundamentar a identidade de quem é convidado e de rodar na escolha dos operadores económicos. (1)

Em síntese, no ajuste direto e na consulta prévia, as entidades adjudicantes têm o poder de escolher e o dever de não discriminar. As práticas amigas da contratação pública fundadas nos princípios que a inspiram é o caminho a percorrer.

A integridade dos compradores públicos será posta à prova. Oxalá que a honestidade sobressaia. Ganharemos todos. Como alguém disse um dia, recordando as palavras de um escritor famoso: “Afinal a melhor posição neste mundo é ser homem de bem”. (2)

(1) Cfr. o autor, in “COVID-19 E CONTRATAÇÃO PÚBLICA – O Regime Excecional do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de Março”, pág. 203, artigo publicado na Revista da Ordem dos Advogados. Vide, igualmente, a palestra do distinto Professor, no dia 27 de maio de 2021, na Conferência “A REVISÃO DO CÓDIGO DOS CONTRATOS PÚBLICOS DE 2021”, organizada pelo ICJP.

(2)  Cfr. a intervenção do senador José Fernando de Sousa, no Diário do Senado, Sessão N.º 54, de 5 de Maio de 1926, pág. 6.