Livino Neto – Jornalista, Mestre em Comunicação, Cultura e Tecnologias da Informação (ISCTE- Instituto Universitário de Lisboa); doutorando em Ciências da Comunicação (ISCTE- Instituto Universitário de Lisboa); colaborador do MediaLab CIES-ISCTE.
Gustavo Cardoso – Professor catedrático no ISCTE – Instituto Universitário de Lisboa. O seu trabalho em redes de investigação europeias levaram-no a trabalhar com o IN3 (Internet Interdisciplinary Institute) em Barcelona, WIP (World Internet Project) na USC Annenberg, COST A20 “The Impact of the Internet in Mass Media” e COST 298 “Broadband Society”. Consulte a sua obra neste link.
Décio Telo – Licenciado em Sociologia e Mestre em Comunicação, Cultura e Tecnologias da Informação pelo ISCTE-IUL, é atualmente gestor do MediaLab-Cies nessa instituição e coordenador técnico do Barómetro de Notícias MediaLab/Priberam.
Com o avançar da pandemia de Sars-Cov2 em Portugal este assunto acabou por ocupar boa parte dos noticiários, sendo discutido sob várias abordagens e através de conteúdos diversos, por forma a constituir uma ou inúmeras narrativas sobre este facto histórico. Esta situação traz consigo perguntas como: as notícias sobre a COVID-19, publicadas na imprensa diária, conectam-se (ou não) em uma única história? Estas notícias constroem uma, ou várias narrativas sobre o acontecimento? Estas são expostas e organizadas nas capas dos jornais, tais como ‘montras de estação’?
Em busca de respostas para estas perguntas, a partir de pesquisa realizada no MediaLab CIES-Iscte, o artigo “A montra jornalística na estação pandémica: análise das capas do Correio da Manhã, Jornal de Notícias e Público”, publicado na edição especial “Circum-navegando as repercussões socio-mediáticas do contexto pandémico” do “Observatorio (OBS*) Journal” (link artigo académico), conclui que as narrativas nas capas dos jornais são diferentes entre si e afetadas pelos modelos de montras, os quais refletem a dicotomia entre os interesses jornalísticos e os interesses comerciais. Questiona-se ainda, no entanto, se o público-modelo que norteia a construção das diferentes montras é apenas um, entre vários possíveis, “retrato-robô”, para fazer «vender» jornais, ou, como nas palavras de Paquete de Oliveira, um claro identificador sociocultural dos públicos da imprensa escrita portuguesa.
O estudo desenvolvido no MediaLab CIES-Iscte parte da ideia da pandemia de Sars-Cov2 como evento mediático e da mediatização como aspeto estruturante da narrativa jornalística sobre a propagação da Covid-19, tendo em conta 90 capas dos jornais Correio da Manhã, Jornal de Notícias e Público publicadas durante os primeiros 30 dias de cobertura da pandemia em Portugal.
Na pesquisa, o período analisado foi dividido em três ciclos: o primeiro, entre a divulgação dos primeiros casos identificados de COVID-19 em Portugal (3 de março de 2020) e a declaração do estado de alerta em Portugal (12 de março); o segundo, desde o encerramento das escolas (13 de março) à véspera da notícia do decreto presidencial que autoriza ao governo decretar estado de emergência (18 de março); o terceiro, da repercussão do decreto presidencial (19 de março) até à véspera da aprovação do decreto de emergência na Assembleia da República (1 de abril).
Para compreender a composição das capas dos jornais durante o período de análise, propôs-se três modelos de montras jornalísticas – de saldos, de produto e de diversidade – em que se considera as características e critérios de noticiabilidade adotados por cada um dos veículos jornalísticos, a partir de três dimensões: a distribuição do conteúdo no espaço físico e hierárquico do jornal (manchete, centro e periferia); as marcas, que podem ser palavras destacadas nos títulos e chamadas; e os recursos imagéticos utilizados.
As capas dos jornais enquanto “montras jornalísticas”
Ao ter em vista a pandemia de coronavírus SARS-CoV-2 enquanto evento mediático, a análise desenvolvida no estudo permite concluir que cada um dos jornais analisados constrói, em sua capa, modelos de montras para a exposição dos seus ‘produtos’ durante esta ‘estação’ de notícias. As montras são significativas na constituição da narrativa que cada jornal compõe sobre a pandemia, a partir da mediação de interesses específicos (públicos ou comerciais) que marcam o conflito no interior do campo jornalístico, na busca de exercer poder institucional na descrição da realidade, na distribuição de informação e na orientação moral do público.
A pesquisa demonstra que cada um dos jornais compôs um modelo próprio de montra, ainda que aperfeiçoado ao longo do período analisado, a partir da evolução dos factos e ocorrências durante a pandemia. Pode-se apontar que há uma evidente distância entre os modelos adotados pelo Público e pelo CM, enquanto o JN, ainda que em seu próprio modelo, se posiciona em um lugar intermédio, com aspetos comuns aos outros dois veículos analisados.
De acordo com os modelos de montras propostos na investigação, verificou-se que, ao longo da pandemia: o Público representa a ‘montra de produto’, com ênfase no próprio produto jornalístico; o CM a ‘montra de saldos’, com apelo a aspetos comerciais e à oferta ao consumidor de um produto popular e ao mais baixo custo; e o JN a ‘montra de diversidade’, ao buscar a promoção de um cabaz de ‘produtos’ o mais variado possível, ao longo da ‘estação’.
As dimensões da pesquisa e a análise espacial da montra
Para se compreender a composição das “montras jornalísticas” e a construção da narrativa sobre a pandemia a partir delas, considerou-se dimensões diversas e complementares desta composição, tendo em vista aspetos que pudessem ser considerados estruturais e de imediata cognição por parte do público e dos pesquisadores envolvidos no projeto. Desta forma, a análise procurou compreender três dimensões presentes em cada uma das montras: 1) Espacial, categorizando-a de acordo com a distribuição do conteúdo no espaço físico e hierárquico (manchete, centro e periferia) do jornal; 2) De socialidade, buscando compreender, a partir das marcas (palavras destacadas, por exemplo) expressas no próprio texto dos títulos e outras chamadas, quais são as representações que remetem para repertórios já constituídos na vida coletiva, com vista a facilitação da ação cognitiva do leitor; 3) Imagético, buscando perceber de que forma os recursos visuais são utilizados na construção de uma narrativa sobre a pandemia de COVID-19 em Portugal, tendo em vista os enquadramentos adotados.
Na análise espacial observou-se um progressivo aumento do número de quadros sobre a pandemia, com o avançar do evento, sendo estes cada vez de maior visibilidade (ocupando áreas superiores a meia página). Inicialmente o CM dedicou, sobretudo, pequenos quadros ao tema da infeção de Covid-19, numa altura em que o Público e o JN já dedicavam grandes quadros ao tema.
Com o desenvolvimento dos acontecimentos, a proliferação de pequenos quadros – além do quadro principal – em cada edição do JN chamou a atenção, sendo este o jornal que mais publicou quadros sobre a pandemia. Já o Público foi o que mais quadros de página inteira publicou nos três ciclos, enquanto o CM foi o único jornal que não adotou este recurso.
Constituição de um modelo de análise de socialidade
Em relação à análise de socialidade é importante destacar que o JN é o que apresenta uma maior diversidade de etiquetas de socialidade e possui diversas conexões com o Público e o CM, os quais, em contrapartida, possuem menos etiquetas e se distanciam entre si na sua forma de utilização, havendo apenas um único nó, na visualização da ‘rede’, que liga as socialidades utilizadas pelos dois jornais – compartilhada também pelo JN – que corresponde à designação nominal do vírus e da doença.
A lógica de utilização das etiquetas vai depender do sentido orientador proposto e dos critérios de noticiabilidade adotados por cada um dos jornais, sendo uma hipótese considerável que a ‘montra de produto’ procure aproximar o público a valores convergentes com a ideologia profissional do jornalismo e que a ‘montra de saldos’ seja mais vinculativa a interesses comerciais, enquanto a montra de diversidade ocupe um lugar intermediário entre ambas.
A figuração da pandemia a partir de imagens
Em relação à análise imagética, observou-se que o Público é o jornal que possui uma distribuição mais equilibrada entre os tipos de figuras utilizadas, contemplando todas as categorias propostas, com uma maior diversidade de enquadramentos para figurar a pandemia de coronavírus em suas capas. Já o CM concentra suas figuras na categoria personalização, enquanto o JN, apesar da forte incidência na categoria personalização, utilizou principalmente as figuras de ‘combate ao vírus, a evidenciar a factualidade dos eventos que envolvem a pandemia.
Tendo em vista uma categorização das imagens utilizadas nas capas dos jornais em cinco tipos de figurações, a pesquisa observou que, mesmo quando os jornais utilizam o mesmo tipo de figura, por vezes o sentido narrativo proposto é diverso entre si: na categoria Combate ao Vírus observou-se a dupla tendência de representação factual das ações de combate à pandemia e a dramaticidade individual para representação do sujeito coletivo; em Urbe, viu-se a utilização de imagens-sintomas que trazem consigo o choque de uma nova realidade; a categoria Personalização trouxe desde personalidades do mundo do entretenimento ao universo da política; em Corpo Viral observou-se a construção de um ‘corpo’ reconhecível ao vírus que fosse assimilável ao imaginário coletivo e capaz de figurar ações; em Impacto na vida humana foi possível perceber diferentes figurações da pandemia na vida cotidiana dos indivíduos, incluindo abordagens mais reflexivas, utilização de imagens-sintoma e figurações individualizadas.
A partir da análise imagética, foi possível perceber a dicotomia entre a montra de produto, com alguma propensão para a utilização de figuras complexas e reflexivas diante do facto social, e a montra de saldo que tende a retratar maioritariamente, personalidades – preferencialmente relacionadas com o campo do entretenimento – nos seus quadros sobre a pandemia, sendo que na última ficam mais salientes as lógicas de fragmentação e personalização da notícia.
Possíveis respostas e novas perguntas
Por fim, a pesquisa realizada pelo MediaLab CIES-Iscte aponta a impossibilidade de constituição de uma única narrativa sobre a pandemia de coronavírus em Portugal; pelo contrário, cada jornal compôs uma diversidade de narrativas a partir da mediação do desenvolvimento dos acontecimentos, com as características editoriais, organizacionais e critérios de noticiabilidade adotados por cada veículo de informação. No entanto, considerou-se também que cada jornal possui estruturas que influenciam o sentido narrativo a ser adotado.
Propondo a reflexão sobre o motivo pelo qual cada jornal assumiu as opções que deram origem aos três modelos apresentados, o artigo abordado apresenta a hipótese de que a ‘montra’ criada por cada jornal se constituiu na representação imaginada, por diretores, editores e jornalistas, sobre os seus públicos-alvo. Ou seja, as opções editoriais escolhidas para lidar com a pandemia associada ao COVID-19 basear-se-iam na teoria de que existe um ‘público-modelo’ para cada um dos jornais.
Neste sentido, diretores, editores e jornalistas produziriam ‘montras-tipo’ com o intuito de fazer funcionar o circuito notícia/audiência/publicidade, o qual é iniciado pela escolha da imagética da capa, as suas chamadas para notícias, as fotos, as infografias e a ordenação delas, numa prática assente na aceitação social dentro da indústria dos media.
Reconhece-se, no entanto, que a ‘capa’, por mais que esteja assente numa dada representação de um público-modelo dos jornais, não é consumida de forma homogénea, propondo uma questão final que adiciona novas camadas aos aspetos levantados na pesquisa: o público-modelo que norteia a construção das montras dos jornais é apenas uma representação para potencializar o comércio dos jornais ou poderia, de facto, ser visto como uma forma de identificar caraterísticas socioculturais dos públicos da imprensa escrita portuguesa?