Cristiano Dias

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Advogado. Licenciatura em Direito na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (Clássica), Mestrado em Direito Comercial na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (Clássica) e Pós-Graduação Avançada em M&A e Corporate Litigation (Clássica).


Faltam 15 minutos para a audiência começar. O frenesim e o barulho dos corredores amplos dos tribunais, a preocupação de conseguir concluir a tempo o famoso (e, por vezes, turbulento) processo de check-in e a conversa muitas vezes inócua com os Colegas são substituídos pela preocupação de saber se a internet vai estar estável durante toda a audiência, se estamos devidamente isolados para que não sejamos interrompidos por qualquer ato externo (como, por exemplo, o nosso cão a ladrar) e se a Dra. Juiz nos vai conseguir ouvir bem ou se serão muitos os cortes no áudio e na imagem.

Aproveito o tempo que me resta para colocar os meus apontamentos acessíveis na secretária (que não tem a história das secretárias imponentes dos tribunais) junto ao computador e, obviamente, certifico-me que tenho o Código de Processo Civil e o Código Civil por perto para qualquer eventualidade. É neste momento que me surge uma importante questão: será preciso a toga? Há Colegas que já me garantiram que ouviram comentários desagradáveis por parte dos juízes por não estarem de fato e gravata e, sobretudo, por não terem a toga vestida. Há outros que me juraram a pés juntos que isso são fake news. Um advogado deve seguir sempre a jurisprudência das cautelas e, por isso, deveria vestir a toga. No entanto, um advogado deve também seguir o bom senso e a lógica das coisas. Por isso, num conflito entre a cautela e o bom senso, ganhou o bom senso (qual o sentido da toga neste contexto?). Não vesti a toga (mas mantive-a por perto).

Quando faltam 5 minutos para a audiência começar, procuro na minha inbox pelo e-mail da secretária do tribunal com o convite para estar presente na reunião via Webex. Assim que o localizo, carrego no botão “Entrar na reunião” e sou, de imediato, transportado para um website onde me pedem para inserir o meu nome e o meu endereço de e-mail. Faço-o rapidamente. De seguida, sou confrontado com a mensagem de que “Ainda é muito cedo para entrar nesta reunião. Tente novamente quando estiver mais próximo do horário agendado de início”. Obviamente que ainda é muito cedo. Faltam 2 minutos. Quando estamos naqueles corredores dos tribunais gelados ou com um calor insuportável, dependendo da estação do ano, também é feita a chamada antes da hora marcada para a audiência? Obviamente que não. Terei, naturalmente, que esperar que esses 2 minutos passem.

Agora à hora certa, volto a tentar entrar. Surge a mesma mensagem. É natural, pois por certo que a funcionária do tribunal não iria ligar os dispositivos e “abrir a porta da audiência” à hora exata. Surge a dúvida: e agora? Será que me tentaram contactar? Será que a audiência vai ser uma vez mais adiada? Devo aguardar mais 5 minutos e voltar a tentar? Ou devo continuar a tentar entrar à espera que alguma vez consiga? Novamente um conflito entre a cautela e o bom senso. Se o bom senso me diria para esperar 5 minutos e voltar a tentar, pois ainda que toda a gente estivesse presente antes, iriam aguardar pela minha entrada, a cautela me dizia para tentar incessantemente entrar para que fosse dos primeiros e não deixasse a Dra. Juiz à espera. Se da primeira vez segui o bom senso, da segunda fui cauteloso. E foi uma decisão errada.

Nos 15 minutos seguintes, devo ter tentado entrar cerca de 30 vezes (parece-me coerente dizer que tentei 2 vezes por minuto). Foi tempo absolutamente perdido e stress acumulado, sem qualquer tipo de necessidade. E percebi isso ainda melhor quando consegui finalmente entrar e me deparei com o facto de a Dra. Juiz (naturalmente!) não estar ainda na sala e o Colega da parte contrária ainda não ter entrado também. Só estava eu e a senhora funcionária. Tanta pressa e stress para absolutamente nada. 15 minutos depois da hora marcada para a audiência ainda nem sequer a chamada tinha sido feita. É o primeiro ponto que têm em comum as audiências realizadas em tribunal e as audiências realizadas por Webex. À hora marcada, no pasa nada. Um clássico.

5 minutos depois lá entra o Colega da parte contrária (mais inteligente do que eu, porque justifica o “atraso” pelo facto de não tendo conseguido entrar à primeira, foi experimentando a cada 10 minutos) e 5 minutos depois disso temos a chamada feita e a clássica questão da funcionária: “Senhores Doutores, posso então chamar a Dra. Juiz?”. Ao que respondemos em uníssono: “Sim, se faz favor”. 25 minutos depois da hora marcada parece que estaria tudo pronto para começar. Rapidamente percebi que estava a ser ingénuo. Assim que a funcionária sai da sala, os momentos que outrora eram preenchidos com o vestir da toga e o organizar de dossiers, papeladas e códigos em cima da mesa, são agora preenchidos com o silêncio de quem aguarda pela entrada da Dra. Juiz a qualquer instante.

Um instante que durou mais 10 minutos. Ao fim dos quais, a Dra. Juiz entra na sala e depois de um rápido cumprimento, enquanto se senta na cadeira, pergunta de forma direta: “Senhores Doutores, alguma possibilidade de acordo?”. O alívio é reconfortante. Não se falou da toga. Mas não demoraram muito a aparecer os primeiros problemas. A Dra. Juiz, que está ao fundo da sala, está muito longe do ecrã. Não nos consegue ver muito bem, não consegue ver quem está presente e que partes representam (terá sido por isso que não falou da toga?). A confusão é maior quando se apercebe que, além dos mandatários, estão presentes vários estagiários que apenas precisam de assistir à audiência para efeitos da OA. Depois de alguma paciência, e decorridos mais uns quantos minutos, e com a preciosa ajuda da senhora funcionária, lá nos conseguimos sinalizar à Dra. Juiz que, ao longe, acenou com a cabeça parecendo saber que partes representamos. O excesso de sol na sala não ajuda nada. O som também não é o melhor. Logo que a palavra é dada aos mandatários, essa situação agrava-se. “Ó Senhor Doutor, tem que falar mais alto e mais devagar, pausadamente, a ligação não é a melhor e não se consegue perceber o que diz” – refere a Dra. Juiz gesticulando furiosamente para que parasse de falar. “Com-bi-nado, Se-nho-ra Dou-to-ra Juiz. Ten-ta-rei fa-lar mais pau-sa-da-mente”. E assim foi. O meu cérebro estava ao ritmo de uma versão remix de uma música qualquer. A minha fala parecia o som dos ponteiros do relógio.

Somos, de seguida, informados da existência de um despacho que a Dra. Juiz iria passar a ler. “É longo. Se os Senhores Doutores estivessem cá, eu entregaria em mãos, mas sendo assim terei que ler”. O pânico instala-se rapidamente na sala virtual. O Colega rapidamente pergunta o quão grande é o despacho e se não seria melhor encontrarmos uma solução para termos a certeza que se tem conhecimento do integral teor do mesmo. A partilha de ecrã da reunião para todos os intervenientes é rapidamente afastada. “Dificuldades informáticas” – diz-nos a funcionária. Felizmente chega-se a um consenso: o despacho será enviado por e-mail para os mandatários e interrompe-se a sessão para ser retomada passados 45 minutos. A Dra. Juiz abandona a sala.

A senhora funcionária começa nervosamente a mexer em papéis e pergunta se nos seria possível soletrar os endereços de e-mail porque não os consegue encontrar. Lá o fizemos. 10 minutos depois lá recebo o e-mail com o famoso despacho, que afinal não era assim tão longo. 3 páginas. Ao fim de 10 minutos, o despacho está lido e analisado, mas ainda faltam 25 para recomeçar a audiência. Lá estamos todos nós, com a câmara ligada, mas no silêncio. Todos nós não, pois falta a Dra. Juiz. Volto a ler o despacho e a tentar perceber se há alguma mensagem subliminar que justifica tanto tempo para o recomeço dos trabalhos. Não, não parece haver nada. Volvidos 25 minutos. Não há Dra. Juiz, e a funcionária terá desaparecido, pois não se vê na imagem.

Ao fim de 10 minutos, o barulho vindo dos microfones do tribunal volta a intensificar-se. É a Dra. Juiz que caminha em direção ao seu lugar e ao nosso ecrã. Após certificar-se que recebemos o despacho e que já o lemos, questiona-nos: “Algum comentário?”. Nenhum. “Muito bem. Então oportunamente será aberta conclusão para se agendar a audiência final. Obrigado Srs. Drs.”. Despedimo-nos todos. A Dra. Juiz sai da sala e eu desligo a ligação.

Antes de arrumar toda a papelada que espalhei pela secretária, vou abrir a porta do escritório. Agora se o meu cão ladrar, já não faz mal. De seguida, equaciono os moldes de como irei transmitir ao cliente o desenrolar da audiência. Certamente que para ele, o grande ponto positivo é que não foi necessária a deslocação ao tribunal. A audiência foi um claro exemplo do cada vez mais atual ditado: “esta reunião podia ter sido um e-mail”.

Fim.

Uma nova conjuntura, traz problemas novos, mas, infelizmente, não resolveu problemas antigos. Certamente que nem todas as experiências foram, ou são, assim. Há ainda um longo caminho para tornar a justiça mais eficiente, com ou sem pandemia, e no final de contas quem perde são os cidadãos e a sociedade civil.