Cristina Dias é Professora Associada com Agregação da Escola de Direito da Universidade do Minho. Diretora do Curso de Mestrado em Direito das Crianças, Família e Sucessões da Escola de Direito da Universidade do Minho e Investigadora do JusGov – Centro de Investigação em Justiça e Governação. Consulte a sua obra neste LINK.

Rossana Martingo Cruz é Doutora em Direito pela Escola de Direito da Universidade do Minho; Mestre em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra; Licenciada em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade do Porto; Docente na Escola de Direito da Universidade do Minho e na Escola Superior de Gestão do Instituto Politécnico do Cávado e do Ave. Consulte a sua obra neste LINK.


Breve comentário ao Acórdão do STJ, de 14.01.2021

1. Atendendo ao número crescente de uniões de facto em Portugal, as problemáticas referentes à cessação da mesma têm ocupado, amiudadamente, os nossos tribunais. O presente acórdão analisa a situação de uma união que, após quase trinta anos de convivência, se dissolve por rutura. Entre outros aspetos, avalia-se a intrincada qualificação e contabilização das tarefas prestadas no lar por um dos conviventes.

Pode ler-se no sumário do Acórdão do STJ, de 14.01.2021, que “a prestação do trabalho doméstico, assim como a prestação de cuidados, acompanhamento e educação dos filhos, exclusivamente ou essencialmente por um dos membros da união de facto, sem contrapartida, resulta num verdadeiro empobrecimento deste, e a correspetiva libertação do outro membro da união da realização dessas tarefas, um enriquecimento, uma vez que lhe permite beneficiar do resultado da realização dessas atividades, sem custos ou contributos”. Assim, “[v]erificando-se, nessas situações, um manifesto desequilíbrio na repartição dessas tarefas, não é possível considerar que a realização das mesmas correspondem, respetivamente, a uma obrigação natural e ao cumprimento de um dever. (…) Não se fundando esse enriquecimento numa causa legítima, não há motivos para que esse encargo não seja contabilizado nas contribuições que permitiram ao outro membro adquirir património no decurso da relação de união de facto, tendo cessado a causa que o motivou – a existência da união de facto”.

O acórdão do STJ – em incidente de liquidação e no seguimento da condenação, já transitada em julgado, do Tribunal da Relação que tinha concluído que a Autora tinha direito a receber o valor equivalente às suas contribuições para a aquisição de diversos bens móveis e imóveis que integram o património do Réu -, decidiu em concordância com o que já tem sido determinado pela nossa jurisprudência e defendido pela doutrina, socorrendo-se do instituto do enriquecimento sem causa.

No caso, provou-se que ao longo de quase trinta anos de convivência, a Autora tratava e cuidava da casa onde ambos viviam e cozinhava as refeições da família. Ademais, ficou igualmente provado que a Autora cuidou do filho de ambos, quer no âmbito familiar, quer acompanhando-o em termos escolares.

Estando-se perante um incidente de liquidação (que concretiza uma decisão genérica já proferida), é necessário quantificar a obrigação em causa, tendo também em linha de conta, como esclarece o aresto do STJ, “se os montantes alegados se inserem na obrigação definida pela decisão liquidanda, não se resumindo o julgamento de liquidação a uma mera operação de quantificação.”.

Na análise da realização do trabalho doméstico, o Tribunal, in casu, afastou o entendimento da obrigação natural pela desproporção verificada, atendendo a que não se tratava de uma colaboração de ambos nestas tarefas, esclarecendo que: ”[s]e esta construção é válida quando a lide doméstica da casa onde ambos vivem e a educação dos filhos é repartida pelos dois parceiros da união de facto em proporções relativamente equilibradas, o mesmo já não sucede quando essas funções são assumidas exclusivamente ou sobretudo por um deles, verificando-se um manifesto desequilíbrio na repartição dessas tarefas. É que, nestas situações de evidente desequilíbrio, não é possível considerar que a prestação do trabalho doméstico e os cuidados, acompanhamento e educação dos filhos correspondem, respetivamente, a uma obrigação natural e ao cumprimento de um dever, existindo uma causa para o enriquecimento resultante da desproporção na repartição de tarefas”.

A obrigação diz-se natural quando se funda num mero dever de ordem moral ou social cujo cumprimento não é judicialmente exigível, mas corresponde a um imperativo de justiça (art. 402.º do Código Civil). É certo que o caráter familiar da vivência em união de facto não se compatibilizará com uma contabilidade organizada dos conviventes, discriminando a participação de cada um nos encargos decorrentes da vida em comum. Daí que a obrigação natural sirva como mecanismo de comedimento, prevenindo uma litigiosidade bagatelar pós-rutura da união, quando exista um contributo comum para a normalidade da vida em conjunto.

 Porém, como bem explica a decisão em análise, “[a] deteção destas obrigações deverá atender ao que a ideia de justiça, enquanto critério harmonizador de interesses conflituantes, espera num determinado tempo histórico e lugar geográfico. Ora, desde há muito que a exigência de igualdade é inerente à ideia de justiça, pelo que não é possível considerar que a realização da totalidade ou de grande parte do trabalho doméstico de uma casa, onde vive um casal em união de facto, por apenas um dos membros da união de facto, corresponda ao cumprimento de uma obrigação natural, fundada num dever de justiça. Pelo contrário, tal dever, reclama uma divisão de tarefas, o mais igualitária possível, sem prejuízo da possibilidade de os membros dessa relação livremente acordarem que um deles não contribua com a prestação de trabalho doméstico, na lógica de uma especialização dos contributos de cada um.

O exercício da atividade doméstica, por apenas, ou essencialmente por um dos membros da união de facto, sem contrapartida, resulta num verdadeiro empobrecimento deste, e a correspetiva libertação do outro membro da união da realização dessas tarefas, um enriquecimento, uma vez que lhe permite beneficiar do resultado da realização dessas atividades sem custos ou contributos.

É, aliás, a perceção desta realidade que motivou o legislador, na reforma do regime do divórcio, operada pela Lei n.º 61/2008, a estabelecer mecanismos compensatórios das contribuições desproporcionadas para os encargos da vida familiar durante o casamento (artigo 1676.º, n.º 2, do Código Civil), aí se incluindo a realização das tarefas domésticas”.

2. O que parece ser de destacar neste acórdão, que decide no mesmo sentido da anterior jurisprudência, é o papel conferido ao trabalho doméstico e a sua relevância na consideração da contribuição de um dos membros para a aquisição do património do casal ao longo da união de facto. Não se trata de um crédito compensatório como o previsto para os cônjuges no art. 1676.º, que assenta na existência de deveres conjugais, mas na utilização do instituto do enriquecimento sem causa.

Existindo uma união de facto entre Autora e Réu, o problema em causa era o de saber se houve enriquecimento injustificado do Réu relativamente aos bens por si adquiridos no decurso da união de facto, com os proventos advindos do exercício da sua atividade profissional, considerando o facto de a Autora sempre ter contribuído para a vida familiar comum com o trabalho prestado no desempenho das tarefas domésticas e no cuidado e educação do filho de ambos.

3. Ao contrário das relações patrimoniais entre os cônjuges e entre estes e terceiros, sujeitas a um regime particular, não há na união de facto um regime de bens, nem têm aplicação as regras que disciplinam os efeitos patrimoniais do casamento. Na ausência de regulamentação legal, os membros da união de facto podem regular eles próprios, de acordo com o princípio da autonomia da vontade, os aspetos patrimoniais da sua relação por via contratual, por “contratos de coabitação”.

Na ausência de tais contratos, e para a resolução dos problemas patrimoniais da união de facto, afastada a possibilidade de aplicação analógica das normas do casamento, a alternativa é a sujeição da regulação dos efeitos patrimoniais da união de facto ao regime geral. De facto, tem sido tal solução a perfilhada pela doutrina e jurisprudência portuguesas.

No acórdão em causa, o problema coloca-se no domínio da contribuição da Autora na aquisição do património pelo Réu e eventuais compensações entre os conviventes pelo trabalho realizado no lar no momento da dissolução da união de facto.

4. Na base do instituto do enriquecimento sem causa encontra-se a ideia de que nenhuma pessoa deve locupletar-se à custa alheia. O objetivo do instituto do enriquecimento sem causa é “apagar a diferença no património do enriquecido”, não interessando “que o empobrecido fique em situação igual, melhor ou pior que aquela em que estaria se não se tivesse dado a deslocação patrimonial que funda a obrigação de restituir”[1].

O enriquecimento consiste na obtenção de uma vantagem de carácter patrimonial, seja qual for a forma que ela revista, numa melhoria da situação patrimonial[2]. Umas vezes tal vantagem traduzir-se-á num aumento do ativo patrimonial, outras numa diminuição do passivo, outras na poupança de despesas[3]… A vantagem em que o enriquecimento consiste é encarada do ponto de vista do enriquecimento patrimonial, que traduz a diferença produzida na esfera económica do enriquecido e que resulta da comparação entre a sua situação efetiva (situação real) e aquela em que se encontraria se a deslocação se não tivesse verificado (situação hipotética).

À partida, à vantagem patrimonial obtida por uma pessoa corresponde uma perda sofrida por outra, ou seja, verifica-se um enriquecimento à custa de um empobrecimento. Mas a diminuição suportada pelo empobrecido não tem necessariamente de ser igual à vantagem conseguida pelo enriquecido. Por isso, a compreensão do instituto do enriquecimento sem causa exige que não seja requisito do mesmo o empobrecimento ou sacrifício económico em sentido rigoroso, mas a necessidade de que haja um suporte do enriquecimento por outrem, que se produza um locupletamento à custa alheia.

Paralelamente, o enriquecimento e o seu suporte alheio, normalmente traduzido num sacrifício económico, têm de estar relacionados. O art. 473.º, n.º 1, do Código Civil, refere “enriquecer à custa de outrem”.

Finalmente, para que se constitua uma obrigação de restituir fundada num enriquecimento, não basta que uma pessoa tenha obtido vantagens económicas à custa de outra. É ainda necessário que não exista uma causa jurídica justificativa dessa deslocação patrimonial. Podemos identificar como causa das deslocações patrimoniais o projeto de vida em comum. Cessando a união, sucumbe a causa justificativa.

A quantificação da medida do enriquecimento de um, face ao empobrecimento do outro, é uma tarefa de difícil concretização. No caso sub judice, o STJ manteve a decisão recorrida que se socorreu da “equidade para fixar um valor global para as contribuições com a realização das diversas tarefas que entendeu terem enriquecido o Réu, tendo adotado como critério o valor do salário mínimo nacional, multiplicado por 12 meses, durante os anos de vivência em comum, ao qual retirou 1/3 do mesmo, considerando a necessidade de afetação de parte desse valor às despesas da Autora”.

5. Em conclusão, e face aos dados apresentados, não se admitindo a aplicação, por recurso à analogia, com o casamento, como vimos supra, os problemas postos pela dissolução da união de facto devem resolver-se por recurso aos meios comuns. Tratando-se da questão da contribuição devida pela Autora na aquisição do património pelo Réu e limitando-se, na realidade, a questão à retribuição à Autora de um compensação pelo trabalho prestado no lar durante os vários anos em que durou a união de facto[4], é correta a aplicação do instituto do enriquecimento sem causa. O que, aliás, tem sido frequente na nossa jurisprudência.


[1] Pereira Coelho, “O enriquecimento e o dano”, RDES, ano XV, 1968, p. 317, nota 5 e p. 332; também Antunes Varela, Das obrigações em geral, vol. I, 10ª ed., Coimbra, Almedina, 2000, pp. 470 e segs.

[2] Apesar de muitas vezes o trabalho realizado no lar por um dos conviventes ser, de certa forma, compensado com o sustento económico que é garantido pelo outro, o que poderia pôr em causa o enriquecimento, não será de afastar o preenchimento deste pressuposto. Na verdade, tal facto só permitirá ponderar o montante da restituição, não afastando o instituto do enriquecimento sem causa.

[3] Por exemplo, poupando em lavandarias, em restaurantes ou refeições pré-preparadas, em empregadas domésticas, etc. Ocorrerá enriquecimento sem causa quando houver intromissão de direitos ou bens jurídicos alheios e essa intromissão pode adquirir a forma de uso, fruição, consumo, etc. O que importa é a verificação de uma vantagem patrimonial à custa de outrem, uma deslocação patrimonial injustificada que pode tomar diferentes formas. Cfr., Antunes Varela, ob. cit., p. 440.

[4] Não ficou provado que o cuidado e educação do filho fosse exclusivamente assegurado pela Autora, razão pela qual não foi ponderado como contribuição da Autora para o enriquecimento do Réu.