Eduardo Ferreira é Professor Catedrático da Faculdade de Direito de Lisboa. Presidente do Instituto de Direito Económico, Financeiro e Fiscal (IDEFF) da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Vice-Presidente do Instituto Europeu da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Director da Revista de Finanças Públicas e Direito Fiscal. Cátedra Jean Monnet em Estudos Comunitários. Sócio fundador da Paz Ferreira e Associados – Sociedade de Advogados RL. Presidente do Conselho Fiscal da Caixa Geral de Depósitos.
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Felicito vivamente a Almedina por uma iniciativa através da qual procura manter níveis altos de reflexão, recusando uma especialização técnica redutora e não se conformando com a venda de livros como se de produtos indiferenciados se tratasse.
A abertura deste espaço, que convoca para um debate nas mais variadas áreas, é também um apelo para que se exprimam e envolvam os que são excluídos por uma comunicação social repartida entre o escândalo e o pensamento político e económico único – que tanto contribui para o abaixamento do nível cultural – fenómeno que, não sendo exclusivamente português, atinge entre nós níveis preocupantes.
A gravidade desse fenómeno torna-se ainda mais patente num momento em que a complexidade e o dramatismo da realidade que vivemos exigiriam uma atuação esclarecida, multidisciplinar e conjunta, criando o cimento necessário a um ambiente social post pandémico liberto dos erros que no passado condicionaram e depauperaram tantas vidas.
Vimos paulatina e tristemente assistindo à substituição da política assente na discussão de ideais e de projectos de sociedade por um cortejo e confronto de egos e ambições pessoais, pela criação de personagens, com desinteresse pela verdade e pela vida da generalidade dos cidadãos que, em resposta, cada vez mais se afastam da participação política ou correm a abrigar-se em enganosos projectos regeneradores.
É frequente pensar-se, sempre que ocorre uma crise grave – ainda que com dimensões menores do que a actual pandemia -, que essa crise vai abrir as vias de um futuro mais equilibrado e mais harmónico. Mas infelizmente a história atesta o caráter ilusório dessa crença. Na saída das crises que o mundo foi conhecendo as desigualdades aumentaram, os responsáveis prosperaram e nenhuma medida de fundo foi implementada para impedir o regresso aos erros do passado.
Por isso mesmo, Kenneth Rogoff – cujo nome não inspira, é certo, grande simpatia pelo colossal erro com que avalizou a devastadora política de austeridade – recordou, com ironia, a propósito das sucessivas crises financeiras que se sucederam ao longo dos séculos, a recorrente afirmação “this time is diferent”.
Afundamo-nos num fosso cujo caminho de saída exigiria a vitalidade, a força e o poder concertado de grandes lideranças mundiais que praticamente desapareceram. No meio deste turbilhão de impotência e indiferença, um homem – o Papa Francisco – tem estado à altura das exigências deste tempo e conquistado o respeito universal, com o seu apelo “todos irmãos”.
Estão, no entanto, no ar alguns apelos à mudança. No início da crise, o Financial Times, na sua edição de 4 de Abril de 2020, publicou um notável editorial quebrando com a sua linha tradicional e afirmando: “reformas radicais – revertendo a direcção política das últimas quatro décadas – terão de ser postas em cima da mesa. Os governos terão de aceitar um papel mais activo na economia e deverão ver os serviços públicos como investimento e não peso, olhando para formas de tornar os mercados de trabalho menos inseguros. A redistribuição deve voltar à agenda; os privilégios dos mais velhos e dos mais ricos colocados em questão. Políticas até aqui consideradas excêntricas como o rendimento básico universal e os impostos sobre a riqueza têm de fazer parte das novas soluções”.
Quem irá pôr em prática essas políticas para as quais se torna necessária irredutível determinação e a coragem da rutura?
Décadas de renúncia a políticas justas, condicionada por movimentos de opinião organizados a partir de interesses económicos, corporativos ou de modismos sociais, criaram um terreno pantanoso sobre o qual é difícil caminhar com uma visão optimista para o futuro.
A derrota eleitoral de Donald Trump nos Estados Unidos, dando expressão a uma ideia de mudança, não elimina a profunda divisão entre as “duas américas”, que promete continuar, nem significa o abandono daquela “fórmula” na política.
A resposta europeia à pandemia foi vista por alguns como uma esperança num novo fôlego da União. Contudo e apesar de alguns progressos, insiste-se em não repensar o projecto europeu, recorrendo-se sistematicamente a soluções de mínimos, sempre tuteladas pela longa sombra da austeridade.
Ao terminar 2020, foi-se o Reino Unido, ficaram a Polónia e a Hungria, mantém-se a pandemia.
A separação do Reino Unido, depois de décadas de relações difíceis, representará uma diminuição enorme do poder militar e estratégico da União, uma quebra no comércio, um recuo na afirmação de uma Europa social, uma derrota para um projecto de unidade e cooperação na Europa.
Também do lado britânico não parece que se venham a recolher grandes benefícios. No domínio cultural, a saída do genial maestro Simon Rattle da Orquestra Sinfónica de Londres foi vista como simbólica de um movimento muito vasto que diminuirá a importância e projeção do Reino Unido e de Londres. O próprio Rattle lamentou “the barriers thrown up by Britain’s departure from the European Union to the careers of young musicians who had grown used to performing freely to the continent’s music-hungry public”.
A permanência e reforço de posição da Polónia e da Hungria, com o seu desrespeito pelo Estado de Direito, demonstraram cabalmente a dificuldade da União em matéria de grandes decisões.
E quanto à forma como a pandemia foi encarada, a diferença de estratégias de combate é a ilustração clara de que a União Europeia continua a não ser a União com que sonharam os seus visionários founding fathers.
Votando, escrevendo, participando no espaço público com a exposição das nossas convicções, manteremos viva uma sociedade digna. Os ventos não estão de feição. Mas só uma atitude de firmeza cívica nos permitirá assegurar um futuro sem regresso à barbárie.