Pedro Costa Gonçalves

Professor da Faculdade de Direito de Coimbra

Advogado

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Tudo indica que a pandemia da Covid-19 vai continuar a reclamar, e talvez até por muito tempo, a vigência de medidas excecionais e extraordinárias, que continuarão a envolver severas restrições dos direitos dos cidadãos. Essa situação, em Portugal como em muitos outros Estados, determinou várias declarações de estado de emergência, nos termos previstos na Constituição: “estado de emergência constitucional”, pelo facto de a respetiva declaração se fazer nos termos previstos e regulados na Constituição.Não é porventura ainda o momento para o estudo sereno sobre se a situação de efetiva emergência sanitária provocada pela pandemia justificava, nos termos em que ocorreu, a mobilização do estado de emergência constitucional. Há, todavia, algumas questões que, supomos, ficaram por resolver sobre o modo como o estado de emergência, nas suas três fases, foi declarado e executado. Como observou Pedro Lomba [[1]], apesar das designações oficiais dos atos que praticaram [[2]], os decretos do Presidente da República não continham a mera “declaração” do estado de emergência e os decretos do Governo não se limitaram a proceder à “execução” da referida declaração, isto apesar de a Lei do Estado de Sítio e do Estado de Emergência [[3]] conferir ao Governo apenas uma competência para a “execução da declaração” [[4]] e de a CRP se referir à “aplicação da declaração do estado de emergência” [artigo 162.º, alínea b)]. Na verdade, em ambas as intervenções, foram estabelecidas verdadeiras normas jurídicas: no primeiro caso, normas que, determinado a suspensão parcial do exercício de direitos fundamentais, autorizavam as “autoridades públicas competentes” a adotarem certas medidas; no segundo, normas que definiam proibições e obrigações aplicáveis aos cidadãos – de resto, não por acaso o segundo e o terceiro decretos do Governo abandonam a referência, que constava do primeiro, à “execução” do estado de emergência, substituindo-a pela alusão ao conceito de “regulamentação” da prorrogação do estado de emergência. Tratava-se, em ambos os casos, de normas de aplicação direta e imediata que, em geral, acolheram enunciados claros, precisos e determinados. Ora, neste contexto, pode questionar-se se terá sido juridicamente correto e adequado declarar o estado de emergência para produzir um resultado como esse, que, afinal, consistiu na estipulação de normas restritivas de direitos dos cidadãos, à margem da AR, o legislador constitucionalmente credenciado para impor ou para autorizar restrições de direitos por via normativa (cf. artigo 18.º, n.º 2, da CRP).

É verdade que a situação da epidemia impôs uma “tirania dos fins”, impondo a adoção de medidas segundo critérios estritos de necessidade, desconsiderando ou, pelo menos, desvalorizando o teste da respetiva adequação  e desconsiderando outros limites[[5]]. E talvez seja isto a explicar o não se ter questionado o facto de o Governo ter estabelecido, por uma via administrativa, “normas” restritivas de direitos dos cidadãos; questão que não se viu colocada apesar de a Constituição e a lei definirem que o estado de emergência não pode “afetar a aplicação das regras constitucionais relativas à competência e ao funcionamento dos órgãos de soberania”. Vendo as coisas no dia de hoje, é caso de perguntar se tudo o que se determinou nos decretos do PR e do Governo sobre o estado de emergência (constitucional) não poderia ou até não deveria ter sido determinado por leis da AR: que poderia, afigura-se claro; que deveria, talvez já não seja tão claro, admitimos. Mas resta a dúvida sobre se, em rigor, o estado de emergência constitucional não estará, afinal, reservado para situações de calamidade pública próximas do caos (pois “não existem normas aplicáveis ao caos”), de estado de necessidade e de cenários apocalípticos; situações que, em razão do seu carácter súbito, imprevisível e incontrolado, demandam respostas imediatas, mas avulsas e casuísticas, delineadas à medida e em função das circunstâncias e da sua ocorrência, e não em função do que se encontra disposto em normas predefinidas. No estado de emergência previsto e regulado na Constituição, encontra-se pressuposta uma situação de exceção e de anormalidade que impede a antecipação ou a previsão, por norma, das medidas a adotar; e isto é assim por ser “impossível «normalizar normativamente» situações caracterizadas pela anormalidade e pela impossibilidade de precisão das providências adequadas e necessárias ao pronto restabelecimento da ordem constitucional” [[6]]. Trata-se, pois, de um cenário em que o direito ordinário se assume como um instrumento contra si mesmo, e impõe a suspensão da sua efetividade; então “é o soberano que decide”, instituindo-se, assim, um “direito para a situação” [[7]]. Na Constituição, que nos parece ter em vista um estado de emergência fundado numa situação de calamidade pública com esse impacto, que, por isso mesmo, envolve ou que é o fundamento da “suspensão do exercício de direitos”, seria decerto o Governo a atuar, a tomar as “providências necessárias e adequadas”, mas sempre em modo de “execução”, já não através da produção de normas primárias de “restrição de direitos” [[8]]. É aliás por referenciar no Governo uma responsabilidade de execução que a Lei do Estado de Sítio e do Estado de Emergência impõe a esse órgão o dever de informar o PR e a AR sobre a “execução do estado de emergência”.

Ora, da situação de emergência associada à epidemia da Covid-19 não emergiu um necessário “buraco negro legal” [[9]], resultante de o Estado se ver na obrigação de se conferir a si mesmo o poder de atuar “sem lei”, num vazio de legislação (“emptiness of law”). Bem pelo contrário, o que temos tido, por todo o lado e também em Portugal, é uma situação de facto que, desde o início, conduziu à estipulação de medidas idealizadas, refletidas e até cientificamente apoiadas, postas e publicadas como normas ou regras para aplicação à situação; aliás, normas que, em geral, se revelaram claras, precisas e determinadas, que, por isso mesmo, promoveram o que podemos designar por racionalização da emergência [[10]]. E, neste contexto, a reação jurídica à pandemia acomodava-se bem com a convocação de um estado de emergência administrativa, e, portanto, com a atuação do Governo e da Administração regulada por normas produzidas pelos “canais normais de produção do Direito Administrativo”, a começar pela AR e a continuar pelo Governo legislador [11].

A declaração do estado de emergência constitucional talvez tenha sido um excesso desnecessário, emergindo assim a dúvida sobre se foi justificada a via de deixar a AR praticamente à margem do processo de produção do direito que regulou a vida dos portugueses entre 18 de março e 2 de maio. Talvez se conclua que não existiu um fundamento indiscutível para o órgão parlamentar ter abdicado da sua capacidade de liderar a situação, através da produção de um direito para a emergência (como sucedeu na Alemanha ou em França [[12]]). Não se trata de advogar, neste âmbito, um processo de “legislativização” do estado de emergência [[13]], mas antes de sustentar que “normas restritivas de direitos” postas e publicadas no Diário da República deveriam ter sido produzidas pelo órgão competente, a AR, através dos seus procedimentos, para enquadrar uma atuação do Governo e da Administração Pública numa situação de emergência.

Em qualquer caso, deixa-se apenas a dúvida, assim nesse estado, no dia de hoje, depois de um caminho de aprendizagem que todos fizemos, a começar pelos atores políticos.

Menor indulgência suscita já a receita, que foi seguida, de manter o Governo na condição do “grande poder normativo” no momento da transição do estado de emergência constitucional para uma situação de emergência administrativa, que resultou da conjugação – não assumida, mas efetiva – da “declaração situação de calamidade”, ao abrigo da Lei de Bases da Proteção Civil [[14]], com a invocação da “emergência em saúde pública”, nos termos da Lei do Sistema de Vigilância em Saúde Pública [[15]]. Na verdade, a Resolução do Conselho de Ministros n.º 33-A/2020, de 30 de abril, que declara a situação de calamidade, no âmbito da pandemia da doença COVID-19, e a Resolução do Conselho de Ministros n.º 38/2020, de 17 de maio, que prorroga a declaração da situação de calamidade, no âmbito da pandemia da doença COVID-19, aprovam um Regime da Situação de Calamidade, que define vários deveres e várias limitações de direitos dos cidadãos, sem amparo claro nas leis que as fundamentam [[16]]. Às normas do Governo editadas por via administrativa sem um fundamento legal claro [[17]] acrescentam-se as que o mesmo órgão aprovou por via legislativa (Decreto-Lei n.º 20/2020, de 1 de maio) impondo a obrigação do uso de máscara ou a submissão a controlo da temperatura corporal, que carecem de uma autorização parlamentar, por imporem restrições a direitos dos cidadãos.

Se o tempo da emergência constitucional pôde justificar alguns excessos normativos do Governo (formalmente autorizados pela declaração do estado de emergência), já nada os legitima na passagem para o tempo da emergência administrativa. Com a cessação do estado de emergência constitucional, os poderes do Governo ficaram confinados nos termos gerais. Esperava-se que a AR assumisse as suas responsabilidades, discutindo – no quadro da alteração de leis vigentes (Lei de Bases de Proteção Civil e Lei do Sistema de Vigilância em Saúde Pública) ou no âmbito da aprovação de leis especiais de emergência – se deveria autorizar o Governo a impor o uso de máscaras, e em que termos o incumprimento desse dever pode ser sancionado, ou determinando o limite máximo de pessoas que podem reunir-se ou ainda definindo se devem ser as autarquias a fixar o número máximo de presenças de pessoas em funerais. Mas nada disso se fez e estas e outras imposições e determinações encontram-se, como vimos, em atos do Governo, praticados no âmbito das suas funções legislativa e administrativa, mas, em qualquer caso, sem a necessária autorização de lei parlamentar. Sucede que, na emergência administrativa, nem os excessos do Governo, nem a abdicação parlamentar são toleráveis. Na emergência administrativa, em que não há direitos cujo exercício se encontre suspenso, impõe-se o respeito pelas regras constitucionais e pelo Direito Administrativo.


[1] Cf. Pedro Lomba, “The constitutionalized state of emergency” [verfassungsblog.de: 15/04/2020].

[2] Vejam-se osDecretos do Presidente da República n.º 14-A/2020, de 18 de março, que declara o estado de emergência, com fundamento na verificação de uma situação de calamidade pública, n.º 17-A/2020, de 2 de abril, que renova a declaração de estado de emergência, e n.º 20-A/2020, de 17 de abril, que procede à segunda renovação da declaração de estado de emergência, e os Decretos do Governo n.º2-A/2020, de 20 de março, que procede à execução da declaração do estado de emergência, n.º 2-B/2020, de 2 de abril, que regulamenta a prorrogação do estado de emergência decretado pelo Presidente da República e n.º 2-C/2020, de 17 de abril, que, como o anterior, regulamenta a prorrogação do estado de emergência decretado pelo Presidente da República.

[3] Lei n.º 44/86, de 30 de setembro, alterada por último pela Lei Orgânica n.º 1/2012, de 11 de maio.

[4] Cf. Artigo 17.º (competência do Governo): “a execução da declaração do estado de sítio ou do estado de emergência compete ao Governo, que dos respetivos atos manterá informados o Presidente da República e a Assembleia da República”.

[5] Sobre este tópico, cf. A. Somek, “Necessity; or: the tyranny of goals”, Coronajournal, 14/04/2020 [https://crisis-diary.net/2020/04/14/necessity-or-the-tyranny-of-goals/]; o imperativo de adotar as medidas “necessárias” (que as necessidades impuseram) afasta a ponderação adequada e equilibrada entre interesses opostos exigida pelo princípio da proporcionalidade: secundariza o respeito pela exigência da adequação, desconsidera o cânone da justeza das medidas e envolve uma aplicação não ponderada do próprio princípio da necessidade; sobre o princípio da proporcionalidade como critério de ponderação de interesses, veja-se o nosso Manual de Direito Administrativo, Almedina, 2019, p. 247 e segs. Apesar de o atual contexto jurídico convoca expressamente o princípio da proporcionalidade no âmbito do estado de emergência (cf. artigos 19.º, n.º 8, da CRP e 3.º da Lei do Estado de Sítio e do Estado de Emergência), a preponderância da necessidade é ainda um resquício do velho princípio de que a “necessidade não conhece lei”; sobre este princípio, cf. M. Koller,Not kennt kein Gebot: Entstehung – Verbreitung – Bedeutung eines Rechtssprichwortes, Recht und Kultur, 2009, p. 14.

[6] Nestes termos, cf. Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. I, Coimbra Editora, 2007, p. 405.

[7] As referências do texto ao facto de, no caos, ser o “soberano que decide”, sendo ele que tem os poderes de decisão última e de definição de um direito situacional criado de forma casuística e à margem do direito instituído, reportam-se a Carl Schmitt, Political theology: four chapters on the concept of sovereignity, MIT Press, 1985 (1922); sobre o autor e a sua teoria sobre o estado de emergência, cf. D. Dyzenhaus, “Schmitt v. Dicey: Are States of Emergency Inside or Outside the Legal Order?”, Cardozo Law Review, vol. 27/5, 2006, p. 2005 e segs.; A. Vermeule, “Our Schmittian administrative law”, Harvard Law Review, vol. 122, 2009, p. 1096 e segs. (p. 1113 e segs.); M. Hong, “Böckenförde, the state of emergency and Carl Schmitt: what Böckenförde learned from Schmitt – und what Schmittians should learn from Böckenförde” [verfassungsblog.de 09/05/2019]; R. Mehring, “Carl Schmitt und die Pandemie” [Teil 1: verfassungsblog.de 11/05/2020; Teil 2, ibidem, 12/05/2020].

[8] Se bem vemos a questão, a “suspensão do exercício de direitos”, possível constitucionalmente apenas no contexto da declaração de estado de sítio ou de emergência, é uma solução última para situações em que não se revela viável definir ex ante o conteúdo das medidas a adotar. Quer dizer, determina-se a suspensão do exercício de direitos para autorizar as autoridades competentes a adotarem as medidas que, perante as circunstâncias concretas, se revelem necessárias e adequadas. Já quando, pelo contrário, se apresenta possível antecipar, discutir e refletir sobre os tipos de medidas a adotar, então não se exige a suspensão do exercício de direitos, mas antes a edição de normas de restrição (“leis restritivas”: artigo 18.º, n.º 3, da CRP), que definem em que termos os direitos são limitados. Sobre o sentido da dicotomia emergência – normalidade (“emergency – normalcy”) em que a primeira se reporta a uma situação súbita, anormal e imprevisível, que requer uma ação imediata, sem reflexão ou ponderação, cf. O. Gross, “Chaos and rules: should responses to violent crises always be constitutional?”, The Yale Law Journal, Vol. 112, 2003, p. 1011 e segs. (p. 1070).

[9] Sobre a aplicação neste contexto do conceito de “buraco negro legal”, cf. Dyzenhaus, ob. cit., p. 2015 e segs.; Vermeule, ob. cit., p. 1107 e segs.; o conceito foi utilizado inicialmente por J. Steyn, “Guantanamo Bay: The Legal Black Hole”, The International and Comparative Law Quarterly, vol. 53/1, 2004, p. 1 e segs.

[10] Cf. B. Ackerman, “The emergency constitution”, The Yale Law Journal, vol. 113, 2004, p. 1029 e segs. (p. 1038).

[11] Sobre a “legislative accommodation” (modificação de leis existentes ou aprovação de legislação de emergência) como um modelo para enquadrar o acionamento de poderes de emergência, cf. Gross, ob. cit., p. 1064 e segs.

[12] Cf. S. Jürgensen, “Critique and crisis: the german struggle with pandemic control measures and the state of emergency” [verfassungsbolg.de: 19/04/2020]; S. Platon, “From one stage of emergency to another – emergency powers in France” [verfassungsblog.de: 09/04/2020]

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[13] Contra esse processo de regulação da emergência por lei ordinária em vez da definição constitucional de procedimentos para a declaração de estado de emergência (mas tendo em mente, supomos, as situações de verdadeiro estado de emergência, ou seja, de caos), cf. E.-W. Bockenförde, “The repressed state of emergency (the exercise of state authority in extraordinary circumstances)”, in M. Künkler/T. Stein (eds.), Constitutional and political theory: selected writings, Oxford University Press, 2012, p. 108 e segs.

[14] Lei n.º 27/2006, de 3 de julho, alterada por último pela Lei n.º 80/2015, de 3 de agosto.

[15] Lei n.º 81/2009, de 21 de agosto.

[16] As resoluções invocam ainda como fundamento o artigo 199.º, alínea g), da CRP, mas as providências que esse preceito autoriza o Governo a adotar não abrangem a limitação de direitos fundamentais.

[17] Em relação à invocação da Lei sobre o Sistema de Vigilância em Saúde Pública como fundamento das resoluções do Conselho de Ministros, deve notar-se que o “poder regulamentar excecional” ali previsto, em caso de emergência em saúde pública, é atribuído “ao membro do Governo responsável pela área da saúde”. Neste ponto, verificou-se uma espécie de absorção pelo Conselho de Ministros da competência (exclusiva) de um dos ministros. Curiosamente, situação análoga ocorreu em França, com a aprovação de um decreto sobre o estado de emergência em saúde, aprovado pelo primeiro-ministro e ministros da saúde e da administração interior, com fundamento numa lei que atribui esse poder apenas ao ministro da saúde; cf. S. Platon, “From one stage of emergency to another – emergency powers in France”, cit.