Pedro Pita Barros

Doutorado em Economia, Professor Catedrático na Universidade Nova de Lisboa, membro do Expert Panel on Effective Ways of Investing in Health (European Commission), membro do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida e membro do Conselho Nacional de Saúde. 

Conheça a sua obra em www.almedina.net


Pedro Pita Barros, economista e autor Almedina, está a acompanhar diariamente a evolução do Coronavírus na economia e sociedade portuguesa, um conjunto de artigos que iremos partilhar nesta rúbrica a que o autor chamou Vida com o Coronavírus da Covid-19

Desta vez, para aberta publicidade do webinar que fiz sobre “o dia seguinte”, com algum exercício de adivinhação (sem consultar entranhas de animais) sobre o sistema de saúde – disponível aqui o video.

Das perguntas colocadas, deixo aqui um primeiro conjunto de respostas:

Supondo que quem já esteve não estará imune a apanhar de novo, bastará alguns infectados para que se espalhe novamente esta pandemia, correcto? como poderemos contornar este problema?

Na medida do que conheço, ainda não sabemos bem como o vírus se comporta, que imunidade fica e durante quanto tempo se tem essa imunidade. As opções que existem são conseguir uma vacina contra o vírus, conseguir uma cura contra o vírus, ou conseguir a denominada imunidade de grupo (em que o número de pessoas imune por contacto prévio com o vírus é suficiente elevado para que este não se propague de forma epidémica). Não tendo nenhuma das três possibilidades disponível de momento, a resposta ao problema terá que ser, muito provavelmente, uma estratégia como a seguida pela Coreia do Sul – identificação de casos, testes a todos os contactos desses casos, e isolamento até que

Não poderá a telemedicina retirar valor percebido ao acto médico e à consulta?

Não creio, sobretudo agora. A telemedicina não é mais do que a medicina habitual com outro “veículo”, que tem agora o valor acrescido não ter o risco de contágio por COVID-19, que parece ser uma preocupação instalada nas pessoas.

A telemedicina é uma boa opção, no entanto há situações, e eu diria na maioria das situações năo se consegue realizar uma consulta sem ver o doente. Como será feito nestas situações? Por exemplo na especialidade de ortopedia é necessário ver o doente em consulta.

Há referências em que mesmo em ortopedia há avaliações que se podem fazer por telemedicina, mesmo que nalguns casos seja preciso pedir a ajuda de uma outra pessoa. As barreiras são menores do que parecem, e vamos assistir à divulgação de muitas práticas nos próximos tempos.

Dado que o setor da saúde está em défice crónico há anos, com os custos adicionais năo previstos por causa do COVID, como é que o sistema de saúde se vai financiar e reinventar, no futuro (próximo)?

Os próximos tempos vão ser, financeiramente, muito diferentes, já que o equilíbrio das contas públicas vai passar a ser avaliado de forma distinta – e para o cumprimento de regras europeias, há até uma margem de despesa pública em saúde que não será incluídas nessas avaliações de do equilíbrio das contas públicas. É uma folga de um par de anos que pode ser aproveitada para o Serviço Nacional de Saúde se reinventar.

Como se coloca a parte da veracidade de sintomas do doente se este pode simplesmente ser um teatro para ter acesso a determinados medicamentos?

Algum desse teatro também pode ocorrer na consulta presencial. E espero que os médicos consigam perceber os sinais desse teatro, seja na consulta presencial seja na consulta por telemedicina. E não sei se o “teatro” é assim tão frequente.

Também é importante pensar nas equipas domiciliárias (unidades de cuidados na comunidade, equipas comunitárias de suporte em cuidados paliativos) na sua segurança. o domicílio é um ambiente não controlado- Há doentes acamados, em cuidados paliativos que desejam permanecer no domicilio. Se ficarem positivos com covid19, como cuidar deles?

Totalmente de acordo, seja em acesso a equipamentos de proteção, seja definição de protocolos de segurança, seja acesso a testes de despistagem de COVID-19.

Tendo em conta a situação actual de falta de médicos de família, como prevê que esta seja colmatada?

Terá que ser continuado o esforço de recrutamento e de formação nessa área, atendendo a um planeamento baseado nas necessidades e nas reformas e saídas que possam ocorrer. O crescimento da cobertura por médicos de família tendo vindo a aumentar na última década, lentamente é certo, mas tem vindo a aumentar.

Não corremos o risco de ter um sistema de saúde despersonalizado, desigual, e ainda mais injusto?

Corremos sempre esse risco, com ou sem COVID-19. No caso da COVID-19, o elemento de acesso a meios de comunicação digitais introduz um elemento adicional de desigualdade que é preciso acautelar. Em termos de personalização, a utilização de novas ferramentas do mundo digital podem até tornar mais pessoal a relação de cada um com o sistema de saúde (na medida em que haverá mais informação que permite encontrar uma resposta única para cada pessoa, em vez de um modelo igual para todos). Mas talvez a pergunta de “despersonalizado” fosse no sentido de “humano”? nesse aspecto, alguns textos recentes têm evidenciado que em caso de necessidade a primeira preocupação das pessoas é encontrar uma resposta, que dê encaminhamento à sua situação. Não precisa de ser necessariamente um primeiro contacto pessoa a pessoa.

Considera que se não for resolvida a crónica insuficiência de financiamento a

Esta pergunta ficou a meio, mas talvez se relacione com outra acima, já respondida.

De quem é a responsabilidade por uma decisão tomada por um robot em caso de morte ou acidente? Ou quando intervém dois médicos em telemedicina?

No primeiro caso, se o robot ou intervenção de inteligência artificial tiver lugar apenas numa fase de diagnóstico será minimizada essa questão, que me parece colocar-se mais na parte de decisão sobre tratamentos. Mas haverá certamente formas de definir essa responsabilidade. Quando há intervenção de dois médicos em telemedicina, porque é a situação diferente de quando há dois médicos em sessão presencial, ou quando um médico pede opinião de outro. Não vejo razão para a telemedicina mudar esse aspecto. Pode é tornar mais frequentemente essas intervenções de vários médicos, mas não é algo inédito.

Claro que a telemedicina é melhor do que “nenhuma medicina” mas năo realização de exame objetivo aumenta sempre a probabilidade de erro de diagnóstico.

É possível que assim suceda em algumas situações, mas pode haver outras em que melhore – fazendo futurologia, se houver um algoritmo de inteligência artificial a observar as imagens em tempo real, poderá detetar alterações que não são visíveis ainda ao olho humano em questões de dermatologia. E alguns dos exames físicos que são feitos presencialmente podem ser feitos mesmo à distância (por exemplo, andar, tossir).

O sistema de saúde é uma “máquina imensa”, especialmente no sector público. Não será mais expectável que todas estas mudanças surjam no sector privado e o SNS vá depois a reboque?

Neste momento, como vai tudo a reboque da COVID-19, algumas mudanças poderão ser rápidas e simultâneas aos sectores público e privado, nomeadamente tudo o que decorra de adaptações à COVID-19.

Considera que face à omissão do diagnóstico oncológico e acompanhamento das doenças cronicas poderão aumentar a carga de doença num futuro próximo?

Há claramente esse risco. Se não se chamar a atenção, é provável que ocorra, mesmo que não seja planeado dessa forma.

O RGPD já hoje pode ser aplicada à telemedicina e prevenir os pacientes que recorram a esta nova forma de medicina?

Creio que os principais direitos garantidos ao abrigo do RGPD também se aplicam na telemedicina. (se estiver errado, algum leitor certamente me corrigirá)

Portugal destaca-se nalgum destes desafios?

Correntemente, não vejo Portugal como líder, mas como é uma transformação que está a ser forçada pela COVID-19, não há motivo para não se dar um salto qualitativo.

Em que medida a crónica insuficiência de financiamento do SNS afetará a evolução necessária para a adaptação digital que antecipou?

Pode até facilitar no sentido em que se torna óbvio a necessidade de renovações, que podem então ser feitas aproveitando o que for a aprendizagem deste período, sobretudo havendo alguma benevolência com a parte financeira associada com as despesas públicas em saúde.

Será que uma das tendências será também uma preocupação com uma melhor e mais frequente informação ao doente, tal como já acontece há alguns anos noutros países?

Essa exigência provavelmente surgirá dos próprios doentes, consoante vão aprendendo a “navegar” novos modelos de relacionamento com o sistema de saúde e com o Serviço Nacional de Saúde em particular.

A presente colaboração dos hospitais privados ao SNS poderá vir a reforçar os laços entre ambos? Em que medida poderá fomentar esta relação no futuro e eventualmente uma privatização do SNS?

É mais provável, até tendo em conta as últimas notícias, que a presente colaboração “azede” um pouco as relações entre hospitais privados e o SNS se começarem a existir diferendos na interpretação de como se aplica o acordo que foi estabelecido. Não vejo que esteja aqui em causa uma privatização do SNS, uma vez que se trata de uma situação de emergência e a colaboração estabelecida é apenas para a resposta à pandemia.

Se o financiamento dos hospitais e cuidados de saúde primários não acompanhar esta mudança dificilmente vamos ver uma mudança sustentável. Esta mudança pode trazer maior eficiência no longo prazo?

Sim.

Qual a sua opinião sobre os problemas éticos que podem surgir resultantes de uma assistência médica mais baseada em data, informação?

São problemas e dilemas aos quais teremos que dar resposta. Não vejo aí uma barreira impossível de ultrapassar.

Nos doentes crónicos em que existe necessidade de efectuar exames, análises como encara a telemedicina?

Nas análises e exames que não são feitos na consulta presencial, não há alteração substantiva. No que for observação sem toque, também em grande medida se poderá observar via telemedicina. E generalizando-se a telemedicina podemos vir a ter desenvolvimentos que não antecipamos hoje – fazendo uma vez mais futurologia, não podemos afastar que no futuro uma pequena caneta na mão do doente não consiga recolher um conjunto amplo de informação que é transmitida imediatamente ao médico, eventualmente com um quadro comparativo com o passado do doente ou com um grupo de referência.

Formação em telemedicina, uma nova área a ser criada para quem exerce a medicina?

Não sei se é necessariamente uma nova área ou um canal diferente pelo que qual se exerce a mesma medicina (enquanto conhecimento).

A variável tempo e fundamental na gestão de risco, qual a estimativa de datas face aos cenários actuais, para o Day After, e início da reorganização do sistema de saúde e investimentos com vista a nova procura e oferta, sabendo-se time-constrained entre a 1ª vaga e 2ª vaga estimada no inverno 2020/2021?

Estas transformações vão levar mais tempo do que apenas o possível tempo entre o final da atual situação e a potencial 2ª vaga.

Qual a posição das seguradoras relativamente a um possível aumento de diagnósticos errados em telemedicina. Poderá ser isto um entravo à generalização da telemedicina – demasiado riscos para os médicos?

Para esta pergunta não tenho resposta. Mas estando a telemedicina em expansão, e havendo pressão crescente para evitar contactos presenciais por medo da COVID-19, é provável que seja encontrada forma de ultrapassar esses entraves, se realmente existirem.

Artigo originalmente publicado por Pedro Pita Barros a 14 de abril em https://momentoseconomicos.com/2020/04/14/the-day-after-vivendo-com-o-coronavirus-22/