J.-M Nobre-Correia
J.-M. Nobre-Correia, mediólogo e politólogo, foi investigador, assistente e professor em Informação e Comunicação na Université Libre de Bruxelles (ULB) de 1970 a 2011, onde foi presidente do Departamento de Ciências da Informação e da Comunicação (1986-1989) e diretor do Observatoire des Médias en Europe (1993-2011). Paralelamente, foi professor convidado na Université Paris II (1996-2006), professor visitante na Universidade de Coimbra (1996-2001) e membro do conselho científico do Europäisches Medieninstitut, de Dusseldórfia (1995-2004).
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O relato e a interpretação da atualidade não podem consistir em entrevistas sem nexo. Para mais em tempos de crise…
Digam lá o que disserem. Mas todo e qualquer projeto de média tem à partida uma opção politico-cultural da sociedade. É claro que a dimensão económica, empresarial, é nalguns casos decisiva. E é mesmo importante que assim seja: num média, a prática jornalística só pode gozar de real autonomia e desabrochar plenamente se as receitas financeiras forem superiores aos custos e as contas geridas com mestria.
A comunhão em torno da opção politico-cultural é, no entanto, indispensável para fazer bem funcionar uma redação. É a sensibilidade correspondente que preside ao tratamento da atualidade e leva também o público a identificar-se com o “seu” média. O que se traduz na partilha de uma mesma visão em relação aos acontecimentos de atualidade, à seleção operada pelo média e à apreciação da sua importância, assim como à interpretação relativamente vizinha que faz e à tomada de posição nas suas grandes linhas que adota.
É que, tecnicamente, a tão apregoada objetividade não existe. Existe sim a boa fé, a competência, o rigor e a exigência no relato e na interpretação dos acontecimentos de atualidade. Só que tais noções variam de pessoa para pessoa, de coletividade humana para coletividade humana. Para além do facto que o profissionalismo não dispensa a tomada em consideração da dimensão cívica no tratamento da atualidade. E é aqui que os jornalistas não podem enveredar impunemente deixando-se seduzir por aqueles cuja obsessão é porem-se em bicos dos pés para aparecerem nos média. Nem cair na facilidade de dar a palavra aos eternos nomes conhecidos por ouras razões, mas perfeitamente incompetentes nas áreas em que é preciso acrescentar uma mais valia às explicações que o média precisa de propor aos leitores, ouvintes, espectadores ou internautas.
O que se tem passado regularmente nestes últimos tempos — por ocasião dos incêndios florestais ou da atual crise do coronavírus, das situações políticas na Venezuela ou no Brasil, para nos limitarmos a estes exemplos —, é absolutamente aflitivo e altamente preocupante. São os mesmos bastonários, líderes sindicais ou presidentes de ligas, os mesmos “colunistas” ou “comentadores” que, saindo da área de atividade e conhecimento natural deles, nos propõem, na sua grande incompetência desenvergonhada, interpretações ou tomadas de posição desprovidas de pertinência. E, por isto mesmo, não deveriam muito simplesmente ter tido direito a intervir na “peça” de informação proposta ao público.
A realidade é que as assessorias de imprensa se impõem cada vez mais perante redações diminutas e por vezes indolentes. Para não falar de uma conceção do trabalho jornalístico em que impera a facilidade na escolha dos “bons clientes” habituais, que não levam muito tempo a contactar, nem exigem grande esforço para retrabalhar em seguida os elementos de informação, explicação ou opinião recolhidos.
Mas há mais: numa “cultura jornalística” que manifestamente domina nas redações, sobretudo de audiovisual — e muito provavelmente, em montante, em escolas onde se deveria ensinar jornalismo —, o que é importante é dar a palavra a provocadores, a engraçadinhos, a indivíduos mais ou menos desbocados, que fazem preferentemente declarações bombásticas. Quer dizer: àqueles cujo “fundo de comércio” é “ser do contra” e “saber malhar”, pouco importando o fundamento factual das afirmações que fazem.
Ora, a cidadania, seja qual for a sensibilidade que a possa configurar, supõe que não se ofereça um palco a atores incompetentes e irresponsáveis, nem a declarações manifestamente contrárias ao interesse geral e ao funcionamento de instituições indispensáveis, sobretudo em tempo de crise. A menos de se considerar que os média e o conteúdo jornalístico que propõem aos seus públicos é totalmente desprovido de incidência na maneira de pensar e de agir dos leitores, ouvintes, espectadores ou internautas. O que significaria então que, de facto, a informação seria puro entretenimento. E que a profissão do jornalismo mais não seria que uma subarte preocupada antes do mais em “animar a malta”…