Manuel Monteiro Guedes Valente

Doutor em Direito pela Universidade Católica Portuguesa. Presidente do Instituto de Cooperação Jurídica Internacional. Professor Associado e Investigador Integrado e Vogal da Direção do Ratio Legis da Universidade Autónoma de Lisboa. Professor do Programa do Curso de Mestrado e Doutorado em Ciências Criminais da PUC-RS e dos Cursos de Pós-Graduação da ESP/ANP-Polícia Federal – Brasil. Membro da Academia Luso-Brasileira de Ciências Jurídicas. Consultor da Feldens.Madruga – Sociedade de Advogados. Advogado e Jurisconsulto.  

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Neste tempo e espaço de crise pandémica, é
imperioso convocar a consciência histórica
para evitar os mesmos erros do passado.

Estes tempos são propícios aos pequenos dominadores ou aos pretensos dominadores e ditadores aparecerem e se afirmaram com ideias e propósitos de bem comum e de interesse do coletivo: a saúde pública, a segurança e a paz públicas. Eis os motes convertidos em axiomas que uma sociedade menos atenta consome sob uma construção intrínseca à paneonomia instalada pelo COVID-19. Nada melhor que o medo esquizofrénico que os ditadores sempre souberem semear, regar, cultivar e gerir como se de filigrana se tratasse.

O exercício de direitos e liberdades – a democracia – acarreta riscos e desafios que uma ditadura, ou um sistema autoritário, totalitário ou de partido único, nunca têm. A questão é como se mitigam esses riscos e como se gerem os desafios para que evite a conversão da excecionalidade em vulgaridade. Não pode o estado de emergência, no pós sua vigência, metamorfosear-se em estado vulgar – estado de normalidade – da ação dos atores do Estado.

O poder é legítimo quando assenta em limites jus normativos, constitucionais e sociológicos, e quando se esgota na dimensão material da sua existência. Já o poder legal, aquele que emana da lei, assenta nos limites que a lei lhe confere, sendo que a lei é o resultado do pensar daqueles que a aprovam e a aplicam. Se é verdade que é através da lei que se limita o poder, não menos é verdade que é através da lei que se confere, se amplia e se aprofunda o poder, que se instalam, encrustam e alicerçam os pergaminhos de autoritarismo, totalitarismo e de ditaduras. Foi por meio da lei que, no início da social democracia cristã, os eleitos se aproveitaram da representatividade do povo para promover ditaduras e sistemas de partido único, assim como a solidariedade e a defesa do todo comunitário contra o déspota se converteram em sistemas de segurança nacional.

A begnitude do bem do passado – v. g., a begnitude do sistema processual inquisitório que derrogou o sistema acusatório ‘puro’ com a ideia de que só assim se poderiam proteger os mais fracos face aos mais poderosos – tem demonstrado que se esboroa na primeira brisa da manhã securitária e dá a mão e espaço à implementação de meios e técnicas de controlo de todos, no início, que a seletividade própria da vida se encarrega de o impor àquela grande parte ou fatia da comunidade que não tem acesso aos corredores do poder formal (e, em certa medida, material).

A tentativa de se querer controlar com o recurso aos sistemas informáticos e de comunicações quem tem e por andam os portadores de COVID-19 apresenta-se como uma begnitude de proteção de todos, da proteção da saúde pública – a saúde do outro e do nós, e, por conseguinte, do eu – e, assim, como promoção de confiança de que tudo se faz para que a vida em comunidade se assuma de forma segura e sem riscos e sem perigos. Muitos, sem terem lido Georg Simmel, aplaudem porque, no meio de tanta solidariedade, olham o outro como estrangeiro. Este olhar, mesmo que disfarçado, é o resultado da paneonomia semeada nos últimos tempos: o medo de morrer por infeção COVID-19 é tal que estão dispostos de abdicar dos direitos e liberdades fundamentais pessoais que custaram o sangue de muitos antepassados. E há quem saiba explorar esse medo de morrer e o utilizar para cultivar um campo de ‘estrangeiros’.

Neste tempo e espaço propício ao surgimento de novas tendências de ‘controlo’ dos cidadãos, convoco e exorto a que tenhamos consciência histórica para que não cometamos os mesmos erros do passado e, depois, lamentemos as nossas escolhas quer por ação quer por omissão. Promova-se a liberdade com responsabilidade – por meio de uma justiça eficiente (e não apenas eficaz) – em vez de apoderamento das estruturas de poder do Estado.