Rui Bebiano
Historiador, professor da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, investigador do Centro de Estudos Sociais e É diretor do Centro de Documentação 25 de Abril. Nas Edições 70 publicou uma biografia intelectual de Tony Judt. Na mesma chancela prepara-se para publicar No Labirinto de Outubro. Cem Anos de Revolução e Dissidência.
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Por estes dias estranhos, fortemente determinados pela emergência e pelo rápido alastramento da pandemia, desenha-se, no esforço para lhe sobreviver e lhe suceder, uma necessidade de regeneração que inevitavelmente irá pautar aspetos da vida humana nos tempos próximos futuros.
A ficção pós-apocalíptica é produzida sobre paisagens de mundos que num dado momento colapsaram. Propõe sempre uma dupla tensão: entre a consciência do fim de um tempo, associado a uma ideia de felicidade perdida, e a necessidade humana de sobreviver às consequências da devastação, promovendo um reinício. Este configura uma nova realidade, não uma reprodução do passado. Neste processo desenvolve-se uma consciência dos erros ocorridos, associada a uma mudança radical dos comportamentos individuais e coletivos. Era esse já o sentido tomado pela narrativa bíblica, incluída no Génesis, sobre Noé e a sua arca, salvos da destruição diluviana de uma civilização sacrílega para fazerem emergir uma sociedade nova e que se pretendia retificada. Em Waterworld, o filme de Kevin Reynolds, de 1995, deparamos com o mesmo cenário de um planeta submergido e de uma espécie humana sobrevivente, com a agravante de a vida ser aqui a de uma guerra feroz de todos contra todos pelo domínio dos raros territórios firmes.
Por estes dias estranhos, fortemente determinados pela emergência e pelo rápido alastramento da pandemia, desenha-se, no esforço para lhe sobreviver e lhe suceder, uma necessidade de regeneração que inevitavelmente irá pautar aspetos da vida humana nos tempos próximos futuros. Em La Dernière Catastrophe, de 2012, o historiador Henry Rousso descreveu um fluxo da História pautado por tempos, ou épocas, sendo cada um sobredeterminado pelas consequências diretas ou indiretas de uma grande calamidade. Esta não é necessariamente um flagelo, mas representa uma alteração inesperada e perturbadora da ordem natural do mundo e da forma como este é interpretado, impondo, a partir da memória partilhada de uma vida que bruscamente ruiu, a necessidade de uma outra, imperativamente renovada. Nesta medida, momentos como os do pós-Holocausto, da queda do Muro de Berlim e do fim da União Soviética, ou do 11 de Setembro de 2001, impuseram alterações profundas na forma de olhar o mundo e de o habitar, determinando um recomeço.
Sem projetar futuros apenas ficcionáveis, percebe-se já que da pandemia o nosso universo partilhado irromperá diverso daquele que conhecemos. Alguns dos contornos serão inevitáveis: mais reservas no contacto físico com os outros, maiores cuidados nos ajuntamentos em recintos fechados, maior atenção a cuidados higiénicos e de saúde, e, após este grande susto, uma perceção mais aguda da importância da vida partilhada à escala global. Isto imporá mudanças, que não serão todas negativas. Uma maior possibilidade de cooperação entre Estados na definição de políticas comuns, a desenvolver num ritmo forçosamente lento e contraditório, também poderá trazer algo de bom. Simultaneamente desdobram-se cenários sombrios: o aprofundamento das distâncias entre nações e continentes, a dilatação dos preconceitos de natureza étnica ou religiosa, o reforço de regimes fundados num autoritarismo higienista, a imposição sobre os cidadãos de uma pesada vigilância da circulação e do relacionamento, a colocação em primeiro plano da recuperação da produção, a expansão da precariedade e do desemprego. O pior será que as medidas restritivas serão justificadas por uma ideia de bem comum fundada num imperativo de sobrevivência. Em nome da cautela, a opressão irá instalar-se, tornando imperativa a resistência e a construção de alternativas.