João Leal Amado

Professor da Faculdade de Direito de Coimbra                        

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Através do Decreto n.º 2-B/2020, de 2 de abril, veio o Governo regulamentar a prorrogação do estado de emergência decretado pelo Presidente da República, dando-lhe, assim, execução. Do ponto de vista jurídico-laboral, uma das disposições mais importantes deste diploma é, sem dúvida, o seu art. 24.º, epigrafado «Reforço dos meios e poderes da Autoridade para as Condições do Trabalho» (ACT), o qual dispõe o seguinte, nos seus dois primeiros números, aqueles que serão objeto do presente texto:

«1 — Durante a vigência do presente decreto e de forma a reforçar os direitos e garantias dos trabalhadores, sempre que inspetor do trabalho verifique a existência de indícios de um despedimento em violação dos artigos 381.º, 382.º, 383.º ou 384.º do Código do Trabalho, aprovado pela Lei n.º 7/2009, de 12 de fevereiro, na sua redação atual, lavra um auto e notifica o empregador para regularizar a situação.

2 — Com a notificação ao empregador nos termos do número anterior e até à regularização da situação do trabalhador ou ao trânsito em julgado da decisão judicial, conforme os casos, o contrato de trabalho em causa não cessa, mantendo-se todos os direitos das partes, nomeadamente o direito à retribuição, bem como as inerentes obrigações perante o regime geral de segurança social».

Trata-se, repete-se, de uma norma importante, que certamente vai gerar apreciações desencontradas quanto à sua bondade e até dúvidas quanto à sua constitucionalidade (já expressas, aliás, pela Ordem dos Advogados), bem como dificuldades de monta quanto à respetiva interpretação e aplicação prática. Deixo aqui algumas primeiras notas a esse respeito, decerto lacunosas e fragmentárias, porventura insuficientemente amadurecidas, mas, ainda assim, uma pequena acha para o debate.

Em primeiro lugar, importa frisar que esta norma não representa qualquer obstáculo a que as entidades empregadoras procedam ao despedimento de trabalhadores, durante o estado de emergência. Nesta matéria, o CT continua a vigorar, nada impedindo a entidade empregadora de lançar mão do despedimento neste período de crise, dentro dos marcos traçados pelo nosso ordenamento jurídico. Assim, o empregador poderá proceder ao despedimento de um trabalhador se para tanto houver justa causa (despedimento disciplinar), assim como poderá recorrer aos mecanismos extintivos do contrato previstos na lei, justamente para casos de crise empresarial (desde logo, o despedimento coletivo, mas também o despedimento por extinção do posto de trabalho), bem como, por último, à figura híbrida do despedimento por inadaptação. Esta norma agora introduzida, reforçando os poderes da ACT, em nada contende com essa possibilidade. Nesta matéria, a única limitação em vigor entre nós diz respeito às entidades empregadoras que recorram aos apoios extraordinários previstos em sede de lay-off simplificado, beneficiando de dinheiros públicos, que, essas sim, estão impedidas de recorrer ao despedimento coletivo ou por extinção do posto de trabalho (bem como, creio, ao despedimento por inadaptação), enquanto esse regime vigorar, bem como nos 60 dias subsequentes, conforme resulta do art. 13.º do DL n.º 10-G/2020, de 26 de março, retificado pela Declaração de Retificação n.º 14/2020, de 28 de março.

Vale isto por dizer que este art. 24.º não priva as entidades empregadoras da faculdade de recorrer ao despedimento. O artigo visa, sim, dar um combate mais célere e eficaz aos casos de despedimento ilícito, de despedimento que seja feito fora dos parâmetros legais. Para esse efeito, a norma concede um novo poder à ACT – o de, sempre que um inspetor do trabalho verificar a existência de indícios de um despedimento ilícito, lavrar um auto e notificar o empregador para regularizar a situação. Essa notificação terá, então, o efeito de suspender a eficácia da decisão de despedimento, mantendo-se o contrato de trabalho em vigor até que a situação seja regularizada ou até ao trânsito em julgado da decisão judicial. Algumas observações, a este propósito:

  1. Segundo o diploma, o inspetor do trabalho deverá lavrar um auto e notificar o empregador para regularizar a situação, sempre que «verifique a existência de indícios de um despedimento em violação dos artigos 381.º, 382.º, 383.º ou 384.º do Código do Trabalho». Algo estranhamente, a lei deixa de fora o art. 385.º, relativo às causas específicas de ilicitude de despedimento por inadaptação, mas abrange todas as outras hipóteses: situações de despedimento por facto imputável ao trabalhador (art. 382.º), despedimento coletivo (art. 383.º) e despedimento por extinção do posto de trabalho (art. 384.º); além, claro, de abarcar as causas genéricas de ilicitude do despedimento, que funcionam para qualquer modalidade, como sejam as de despedimento discriminatório, de improcedência do motivo justificativo invocado, bem como as de inexistência do respetivo procedimento, previstas no art. 381.º Assim sendo, é claro que o inspetor do trabalho, confrontado com um caso, por exemplo, de alegado despedimento por inadaptação, que, todavia, não tenha sido antecedido do respetivo procedimento, deve também lavrar o auto, pois a situação inscreve-se no art. 381.º e não no art. 385.º
  2. Com a notificação ao empregador, o despedimento fica suspenso, isto é, a eficácia extintiva da declaração de despedimento é paralisada, pelo que o contrato de trabalho retoma a sua vigência. Ou seja, a lei confere agora um papel importantíssimo à ACT, neste período de emergência, competindo-lhe evitar que a crise pandémica seja aproveitada, por empregadores menos escrupulosos, para despedirem trabalhadores à margem da lei. Reitero: a lei não proíbe os despedimentos que o CT autoriza, a lei tenta, apenas, conceber um mecanismo mais expedito e célere para evitar que, neste período de crise, se despeça ilicitamente.
  3. O poder em causa, de suspender o despedimento, é atribuído à ACT «durante a vigência do presente decreto», como se lê na parte inicial do n.º 1 do art. 24.º E este decreto entrou em vigor no dia 3 de abril de 2020, conforme dispõe o seu art. 47.º Em todo o caso, julga-se que o poder agora atribuído à ACT, de suspender um despedimento que apresente fortes indícios de ilicitude, pode exercer-se, quer relativamente a um despedimento ocorrido após as 00h do dia 3 de abril, quer relativamente a um despedimento ocorrido antes (por exemplo, em março). Isto é, só a partir de 3 de abril a ACT passou a poder lavrar o auto e notificar o empregador para regularizar a situação, mas essa situação bem poderá reportar-se a um despedimento ocorrido antes de 3 de abril, contanto que se trate de um despedimento ainda judicialmente impugnável, isto é, um despedimento cujo prazo de impugnação não se tenha já esgotado.
  4. A lei estabelece o momento até ao qual a suspensão do despedimento opera – até à regularização da situação pelo empregador ou até ao trânsito em julgado da decisão judicial. A lei já não é tão clara, contudo, quanto ao momento a partir do qual a referida suspensão opera – terá a notificação efeitos retroativos, suspendendo o despedimento desde a data em que o mesmo ocorreu? Ou a suspensão só opera a partir da data da notificação? Creio, ainda que com dúvidas, que a resposta correta é esta última.
  5. A notificação ao empregador suspende os efeitos do despedimento «até à regularização da situação do trabalhador», lê-se no n.º 2 do art. 24.º Neste segmento, a lei parece prever a hipótese de o empregador, tendo sido advertido pela ACT da ilicitude do ato cometido, vir a revogar o despedimento, assim regularizando, ele mesmo, a situação. É certo que, em princípio, o despedimento consiste numa declaração de vontade unilateral e recetícia, que não pode ser revogada pelo próprio empregador, unilateralmente, sendo ainda necessária a anuência do trabalhador para que tal revogação se verifique. Este é, porém, um diploma que prevê respostas excecionais para tempos de crise pandémica, de emergência nacional. Creio, por isso, que, neste caso, se o empregador receber a notificação da ACT, poderá revogar o despedimento realizado, por sua decisão unilateral. No fundo, é isso mesmo que a lei parece querer: que a ACT controle, sinalize, advirta e que, na melhor das hipóteses, o empregador reconheça e corrija ele mesmo o ato ilícito que praticou, revogando o despedimento.
  6. Se o empregador não regularizar a situação, máxime revogando o despedimento proferido, o trabalhador terá de o impugnar judicialmente, dentro dos prazos de que dispõe para o efeito, terminando então o efeito suspensivo aquando do trânsito em julgado da respetiva decisão judicial. O prazo de caducidade do direito de o trabalhador impugnar o despedimento oscila, em função de vários fatores (se é um despedimento individual ou coletivo, se foi comunicado por escrito ou não ao trabalhador), entre os 60 dias e um ano, passando pelos seis meses. Em qualquer caso, parece claro que se o trabalhador não impugnar o seu despedimento dentro do prazo que a lei lhe confere, o despedimento passará a ser judicialmente inatacável e, assim sendo, expirando esse prazo e caducando tal direito, a suspensão do despedimento deixará, imediatamente, de operar.
  7. Recorde-se, todavia, que, segundo dispõe o art. 7.º, n.º 3 e 4, da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, que estabelece medidas excecionais e temporárias de resposta à situação epidemiológica provocada pelo novo coronavírus e pela doença COVID-19, a situação excecional que se vive constitui causa de suspensão dos prazos de prescrição e de caducidade relativos a todos os tipos de processos e procedimentos, norma que prevalece sobre quaisquer regimes que estabeleçam prazos máximos imperativos de prescrição ou caducidade, sendo os mesmos alargados pelo período de tempo em que vigorar a situação excecional. Norma esta que, portanto, parece também encontrar aplicação em sede de impugnação do despedimento, determinando a suspensão do prazo de caducidade do direito de impugnar a decisão do empregador.
  8. Este art. 24.º suscita, claro, múltiplos problemas aplicativos, desde logo no que tange à conciliação entre o poder nele conferido à ACT e a figura da suspensão judicial do despedimento, providência cautelar regulada no Código de Processo do Trabalho, para o qual remete o art. 386.º do CT. Nada impede o trabalhador despedido de lançar mão desta providência, requerendo ao tribunal a suspensão preventiva do seu despedimento, caso em que, julgo, a ACT deverá abster-se de intervir. Todavia, muitos serão os casos de trabalhadores ilicitamente despedidos que, por esta ou por aquela razão, não lançam mão desta providência. Ora, nestes casos, aí sim, a ACT pode atuar, se tiver conhecimento da situação, lavrando o auto e notificando o empregador.

Numa curta apreciação geral, creio que esta norma agora criada, concedendo novos poderes à ACT em ordem a reforçar os direitos e garantias dos trabalhadores, merece aplauso. A ACT é uma entidade que tem por missão controlar o cumprimento das normas em matéria laboral, zelando pelo seu efetivo respeito. Numa situação de emergência nacional, de pandemia, em que, como se tem dito, ninguém deve ser deixado para trás, a lei não é radical, não proíbe que o empregador despeça. Mas a lei tenta evitar que o empregador, neste contexto, despeça ilicitamente, depositando na ACT o poder de paralisar, ainda que transitoriamente, os efeitos de um despedimento que revele fortes indícios de ilicitude. Nestas situações, tendo em conta a crise e a garantia constitucional da segurança no emprego e da proibição do despedimento sem justa causa, a dimensão procedimental ganha ainda mais importância e há que encontrar mecanismos expeditos que possam evitar, na prática, a consumação de despedimentos ilícitos, em plena crise pandémica. Ora, a sensação que existe é que, no passado mês de março, depois de eclodir a crise, muitos despedimentos manifestamente ilícitos foram realizados no nosso país (despedimentos sem o menor respeito pelas mais básicas regras procedimentais, sem aviso prévio, sem pagamento das compensações devidas, sem formalização escrita, etc.). Esta é uma medida de urgência para uma situação de emergência. É uma medida, decerto, pouco ortodoxa, mas que tem a vantagem de permitir suspender despedimentos com fortes indícios de ilegalidade sem forçar o trabalhador despedido, ele mesmo, a reagir judicialmente, ao menos num primeiro momento: o trabalhador pode denunciar o caso à ACT e será o inspetor do trabalho que, depois de analisar a situação, ainda que perfunctoriamente, poderá lavrar o auto e notificar o empregador. E, note-se, é uma medida provisória, pois tudo irá depender, a final, da atuação do empregador notificado, regularizando a situação, ou da decisão judicial que vier a ser proferida. Mas é uma medida cautelar complementar que se justifica inteiramente, atenta a necessidade de não contemporizar com práticas patronais que fazem descaso da lei. A esses, a lei diz agora: cuidado, a ACT tem novos poderes, a ACT foi empoderada e conta com mais recursos humanos, mesmo se apenas transitoriamente.