
David Falcão
Professor Coordenador com Agregação do Instituto Politécnico de Castelo Branco
A Lei n.° 93/2019, de 4 de setembro, alterando o Código do Trabalho (CT), subtraiu ao elenco de motivos justificativos relativos à celebração de contrato de trabalho a termo certo, os trabalhadores à procura de primeiro emprego[1] e os desempregados de longa duração[2]. Por sua vez, instituiu um período experimental de 180 dias em caso de celebração de contratos de trabalho por tempo indeterminado em que o trabalhador contratado se incluísse numa destas categorias.
Pese embora a razão subjacente ao impulso legislativo assentasse no estímulo à contratação por tempo indeterminado de trabalhadores à procura de primeiro emprego e de desempregados de longa duração, em termos práticos, a solução resultante de tal impulso legislativo, teve o (de)mérito de combater precariedade com precariedade. Se a medida aparentou ter algum fundamento desde o prisma do empregador, contanto que os 180 dias cumpririam o desiderato de minimizar o risco (empresarial) de contratação por tempo indeterminado de trabalhadores em longo período de inatividade ou, teoricamente, inexperientes, desde a perspetiva do trabalhador conduziu à propalação da sua vulnerabilidade. Ora, previamente à entrada em vigor da Lei n.º 93/2019, de 4 de setembro, os trabalhadores à procura de primeiro emprego e em situação de desemprego de longa duração podiam ser contratados a termo certo. Por seu turno, tendo, entretanto, deixado de o poder ser, a sujeição a um período experimental de 180 dias, se contratados por tempo indeterminado, implicava, na prática, uma espécie de contrato de trabalho a termo travestido de contrato de trabalho por tempo indeterminado, com a agravante de poder cessar ad nutum, a qualquer momento, por período excessivamente longo, quando comparado com o período homónimo a que a generalidade dos trabalhadores se sujeita, e sem que haja lugar a qualquer compensação por essa cessação. Encerrou, na verdade, um esquema compensatório do empregador por lhe ter sido retirada a possibilidade de contratar aqueles trabalhadores a termo.
Destarte, a duvidosa constitucionalidade da solução legislativa, foi sujeita ao crivo do Tribunal Constitucional (TC), que veio a declarar a inconstitucionalidade parcial, com força obrigatória geral, da norma contida no artigo 112.º, n.º 1, al. b), subal. iii), do CT, na redação introduzida pela Lei n.º 93/2019, de 4 de setembro, na parte que se refere aos trabalhadores à procura do primeiro emprego, quando aplicável a trabalhadores que anteriormente tenham sido contratados, a termo, por um período igual ou superior a 90 dias, por outro(s) empregador(es), não declarando a inconstitucionalidade da norma contida no artigo 112.º, n.º 1, al. b), subal. iii), do CT, na redação do diploma referido, na parte remanescente.
Não cabendo, neste breve texto, um comentário à decisão do TC[3], cumpre referir que na sequência da declaração parcial de inconstitucionalidade da norma
referida, o legislador, vinculado à decisão do TC, lançou mão de uma solução que não só foi além do postulado pelo Tribunal, como contrariou a primitiva intenção subjacente ao alargamento do período experimental, tendente a diminuir a resistência das entidades empregadoras em celebrarem contratos de trabalho sem termo[4]. Com efeito, mantendo-se intacta a duração do período experimental, quanto às duas categorias específicas de trabalhadores à procura de primeiro emprego e desempregados de longa duração, a redação do n.º 5 do artigo 112.º, do CT, para além de prever, na senda da decisão do TC, a redução do período experimental de 180 dias para 90 dias, no caso de trabalhador à procura de primeiro emprego que haja celebrado anteriormente contrato de trabalho a termo, com distinto empregador, por período igual ou superior a 90 dias, e estendido tal previsão a desempregado de longa duração, reconduziu à eventual redução por período superior ou, no limite, à sua exclusão, consoante duração anterior de contrato a termo, com diferente empregador, superior ao referido período. Acresce a tal redução ou exclusão do período experimental, nos termos descritos, a irrelevância das funções desempenhadas pelo trabalhador à procura de primeiro emprego ou do desempregado de longa duração ao abrigo do contrato a termo anteriormente celebrado com empregador distinto.
Qualquer redução desproporcional ou exclusão do período experimental, nos termos descritos que, consequentemente, impeçam o empregador de apreciar devidamente as qualidades do trabalhador contratado e formar juízos de valor acerca da eventual manutenção do vínculo, promove, nos mesmos moldes, a sua resistência em contratar.
Reputámos a solução como extremamente prejudicial às duas categorias específicas de trabalhadores. Se o primitivo desiderato legislativo passava pelo combate à precariedade associada à natural contratação a termo, uma medida que automaticamente reconduza à redução ou exclusão do período experimental, por referência a contrato a termo anteriormente celebrado, independentemente das funções desempenhadas, teve o demérito de aumentar exponencialmente a resistência dos empregadores e, consequentemente, a precariedade dos trabalhadores à procura de primeiro emprego e dos desempregados de longa duração.
Defendemos, pois, a revogação da norma e a equiparação do período experimental das duas categorias de trabalhadores ao período de prova da generalidade dos restantes trabalhadores.
Ora, de facto, o recentíssimo Anteprojeto de Lei da Reforma da Legislação Laboral pretende revogar expressamente o n.º 1, al. b), subal. iii) e o n.º 5, ambos do artigo 112.º do CT. Trata-se, a nosso ver, de um presente envenenado, por diversos motivos, que cumpre referir telegraficamente.
Primeiro, porque da leitura do Anteprojeto, constatamos a reinserção das duas categorias de trabalhadores no elenco de motivos justificativos subjacentes à contratação a termo certo. Destarte, retrocede-se a um momento pré-Lei n.º 93/2019, de 4 de setembro, em que esta tipologia de trabalhadores podia ser contratada a termo, pelo simples facto de se tratar de trabalhador à procura de primeiro emprego ou de desempregado de longa duração. O empregador passa a dispor (novamente) da possibilidade de contratar ad eternum este tipo de trabalhadores, a termo, sem necessidade de invocar motivo justificativo, a não ser esse mesmo: trabalhador à procura de primeiro emprego ou desempregado de longa duração. É um “motivo” que não é compatível com a lógica e teleologia da contratação a termo: satisfação de necessidade temporária ou iniciativa empresarial determinada.
Segundo, podendo, efetivamente, admitir-se a contratação dos referidos trabalhadores e justificar-se tal contratação por referência a motivo de “política de emprego”, parece-nos que o termo mais adequado será o de “política de precariedade”. A solução tem o (de)mérito de combater precariedade com precariedade mais severa. Na verdade, espezinha os interesses dos trabalhadores à procura de primeiro emprego e dos desempregados de longa duração que, sendo uma classe, naturalmente, débil, são relegados, novamente, para o fundo da “pirâmide laboral”.
Terceiro, o desiderato desta reversão é, naturalmente, o de compensar as entidades patronais, não se descurando qualquer fundamento para tamanha bondade do legislador. Aliás, se tal compensação advém dos incentivos previstos em legislação de política de emprego, pelo facto de contratar as referidas categorias de trabalhadores, qual a razão tendente a uma dupla compensação? É, na verdade, um esquema “patronalista”, despido de qualquer nexo e que carece de qualquer fundamento.
Numa conjuntura em o combate à precariedade está na ordem do dia, não deixa de ser estranha a enraizada precariedade laboral sistémica: ora na intenção de alargar os motivos subjacentes à contratação a termo e de ampliar a duração deste tipo contratual; ora na persistência em manter um regime de trabalho temporário aberrante; ora na clara intenção de dinamitar a proibição do recurso à terceirização de serviços nos 12 meses subsequentes a despedimento coletivo ou por extinção do posto de trabalho; ora na reintrodução do banco de horas individual…
Cumpre finalizar apelando ao bom senso e à reflexão, lançando um desafio ao legislador: combater a precariedade laboral dos trabalhadores à procura de primeiro emprego e em situação de desemprego de longa duração, mediante a mera revogação do n.º 1, al. b), subal. iii) e do n.º 5, ambos do artigo 112.º do CT, olvidando a sua reinserção no elenco de motivos justificativos subjacentes à contratação a termo certo.
[1] Aqueles que nunca celebraram contrato de trabalho por tempo indeterminado. A este respeito cfr. FALCÃO, David, “Às Voltas com o Regime do Período Experimental”, Revista Eletrónica de Direito – RED, Revista da Faculdade de Direito da Universidade do Porto/Centro de Investigação Jurídico-Económica, n.º 3, 2024, pág. 154.
[2] Os que não tenham qualquer vínculo laboral por período igual ou superior a 12 meses. A este respeito cfr. FALCÃO, David, “Às Voltas com o Regime do Período Experimental”, Revista Eletrónica de Direito – RED, Revista da Faculdade de Direito da Universidade do Porto/Centro de Investigação Jurídico-Económica, n.º 3, 2024, pág. 154.
[3] A este respeito cfr. FALCÃO, David, “Às Voltas com o Regime do Período Experimental”, Revista Eletrónica de Direito – RED, Revista da Faculdade de Direito da Universidade do Porto/Centro de Investigação Jurídico-Económica, n.º 3, 2024, págs. 140 e ss.
[4] A este respeito, cfr. FALCÃO, David e FALCÃO, Marta, “Período Experimental e Princípio da Segurança no Emprego – As Mais Recentes Alterações (2019-2023)”, in Revista do Centro de Estudos Judiciários, vol. II, 2023.