
Rui do Carmo
Procurador da República jubilado. Professor convidado da Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade de Coimbra.
Consulte a sua obra neste link.
A Legislação sobre Violência Doméstica Anotada, coordenada por Cristina Araújo Dias, Margarida Santos e Rui do Carmo, publicada pelas Edições Almedina em março do presente ano (2025), conta com a participação de quarenta pessoas com formação em diferentes áreas do conhecimento – Direito, Psicologia, Sociologia, Criminologia, Serviço Social, Educação e Saúde -, cujos percursos e experiências profissionais são muito diversificados: uma estão envolvidas na investigação e na docência; outras têm intensa atividade judiciária, de apoio às vítimas, na ação social e terapêutica, pericial ou de consultoria. Não era possível anotar esta legislação mobilizando apenas conhecimentos jurídicos.
Todas contribuíram, com o seu saber, conhecimento da realidade e experiência, para uma leitura e aplicação mais informadas e esclarecidas do Regime Jurídico aplicável à prevenção da violência doméstica e à proteção e assistência das suas vítimas (Lei nº112/2009, de 16.09), do crime de violência doméstica (artº 152º do Código Penal) e da legislação processual penal mais relevante no combate à violência contra as mulheres, à violência contra as crianças e, em geral, no combate à violência doméstica.
O desenvolvimento e o progresso deste combate enfrentam diversos desafios, dos quais enunciarei aqui seis, a que atribuo especial relevância.
1º. O desafio que decorre dos ciclos de avanços e recuos das mentalidades.
Lídia Jorge, nos seus recentes Diálogos com Carlos Reis[1], dizia:
As mentalidades são rios que correm num subterrâneo, não estão bem à vista. E, portanto, 50 anos depois, há rios que vêm de lá. E há correntes que se renovam com novas águas, e nunca se percebe até que ponto se renovam e depois voltam para trás. Portanto, as mentalidades são não só difíceis de mudar como, ainda por cima, estão sujeitas a ciclos de avanço e recuo. Não há uma espada que corte as mentalidades em duas metades, separando com nitidez umas das outras.
2º. O desafio de conseguir intervir de forma coordenada, coerente e proficiente sobre situações que interferem com diversos aspetos da vida dos seus protagonistas, ultrapassando os constrangimentos que decorrem de lógicas de atuação e de procedimentos que seccionam realidades indissociáveis, gerando incoerências, ineficácia, quando não mesmo a agudização das contradições e, portanto, do conflito.
3º. O desafio da progressiva centralidade que a vertente criminal tem vindo a adquirir, abrangendo o crime de violência doméstica um largo espetro de factos cuja interpretação, é, socorrendo-me aqui das palavras de Madalena Duarte[2], frequentemente influenciada não “pelos códigos jurídicos, mas antes [por] códigos sociais, morais e éticos” que podem “condicionar o potencial progressista da lei”, e que, acrescento eu, têm gerado uma certa volatilidade na interpretação dos elementos típicos do crime.
4º. O complexo desafio do significativo aumento dos inquéritos por violência doméstica, documentado nas estatísticas oficiais.
[RASI 2024] |
Esta realidade não pode, contudo, ser tratada como se de um “contencioso de massas” se tratasse. Enfrentá-la adequadamente exige: recursos qualificados e adequadamente dimensionados; um forte investimento na prevenção, a começar pelo papel essencial do sistema de educação na formação cívica e para a afirmação do respeito pelos direitos fundamentais; capacidade de efetivo apoio às vítimas; capacidade para averiguar, compreender e dar resposta à especificidade de cada caso nas suas diversas dimensões, melhorando a cooperação interinstitucional e interdisciplinar, superando as dificuldades que muitas vezes decorrem do fracionamento dos procedimentos.
5º. O desafio que decorre da posição não raramente ambivalente das vítimas, assim como da necessidade de assegurar a concordância prática entre o princípio da autonomia da vontade da vítima e a natureza pública do crime.
Luís Miguel Nava equacionou-o neste poderoso poema[3]:
No extremo do seu braço, onde era de supor que não houvesse senão uma, ele na realidade tinha, uma envolvendo a outra, duas mãos. Ambas podiam, consoante a ocasião, chamar a si qualquer destas funções – acariciar ou agredir -, embora sempre de maneiras diferentes. Apesar de apenas uma, provavelmente a que mais próxima estava do seu espírito, fazer o mar vir à superfície daquilo em que tocava, era impossível distingui-las, sobretudo pelo facto de elas, sem que alguma vez tenhamos descoberto de que modo, permutarem entre si. Nunca sabíamos qual de ambas se encontrava grávida da outra.
6º. O desafio que decorre de ser predominantemente uma violência de género, ainda mais acentuadamente nos casos de homicídio.
Esta fala de Rebecca, em Caro Idiota, de Virgine Despantes[4], não nos surpreende:
Suportamos perfeitamente a ideia de que as mulheres sejam mortas pelos homens, com a simples justificação de que são mulheres. Exceto se são raparigas ou velhotas. O que significa que suportamos perfeitamente a ideia de que uma mulher seja vítima de um homem enquanto estiver na idade de ter uma sexualidade ativa. (…) E acho que isso acontece por ela ser sexualmente ativa. A sociedade compreende o assassino. Condena-o, evidentemente. Mas, antes de mais, compreende-o. É mais forte do que ele. Quer seja a mulher dele ou uma desconhecida.
Responder a estes desafios exige uma maior capacidade de aplicação da lei, para o que esta obra constitui, seguramente, mais um relevante contributo.
[1]Diálogos com Lídia Jorge, Carlos Reis, 2025, Publicações D. Quixote.
[2] O papel do direito e dos tribunais na violência contra as mulheres, 2023, Edições Afrontamento.
[3]As Mãos, Poesia Completa 1970-1994, 2002, Publicações D. Quixote.
[4] 2023, Elsinore (Penguin Random House Grupo Editorial).