Catarina Coelho Fonseca
Mestre em Direito das Empresas e do Trabalho pelo ISCTE, Lisboa.
Pós-Graduada em Direito do Trabalho e da Segurança Social.
Jurista, com experiência no setor segurador.
Investigadora Colaboradora do Instituto Jurídico Portucalense.
O compliance fiscal e o branqueamento de capitais
Enquadramento
O branqueamento de capitais é um fenómeno que tem merecido especial atenção do legislador europeu e nacional para a regulação da atividade no setor financeiro[1]. A tecnologia propicia a que métodos mais sofisticados sejam utilizados para enganar as instituições e as autoridades, o que implica que sejam criados regimes, com sanções mais pesadas, tendo em vista desincentivar esta prática.
Contudo, observa-se que esta é uma realidade transversal a vários setores de atividade, sendo as instituições financeiras o meio mais conveniente para atingir um fim – o não pagamento de impostos.
Esta relação entre o branqueamento de capitais e o (não) pagamento de impostos é uma relação triangular, em que encontramos o compliance como último vértice. O branqueamento de capitais existe porque os sujeitos passivos de uma relação tributária não querem cumprir as obrigações associadas aos impostos sobre o seu rendimento e, por isso, recorrem a mecanismos que visam ocultar a origem do rendimento que pretendem que não seja tributado.
Compliance fiscal: um investimento na prevenção da criminalidade económico-financeira
O termo compliance significa cumprimento e representa a posição que as empresas querem adotar no mercado – de cumprimento ou de incumprimento. A cultura de compliance estende-se a todos os departamentos de uma empresa e verifica-se nas relações com todos os sujeitos com que a empresa contacta (por exemplo, clientes e fornecedores).
O compliance apresenta duas dimensões: (1) riscos e (2) procedimentos. A primeira resulta da atividade da empresa e dos riscos a que esta está exposta. Estes riscos são personalizados consoante a estrutura da empresa e poderão ser classificados consoante o seu impacto: legal, financeiro, negocial, reputacional e societário. Por sua vez, a vertente dos procedimentos representa uma faceta normativa, em que a empresa, através da delegação noutra pessoa – que será na pessoa que desempenha a função de compliance officer – que será responsável por garantir o cumprimento das obrigações legais, normativas e regulamentares aplicáveis.
O conceito de compliance está associado ao dever de cuidado que impende sobre os administradores, de acordo com a lei societária (cfr. art. 64.º, do CSC). Por sua vez, o dever de cuidado inclui um dever de diligência, que inclui o compliance, na vertente de análise de riscos da empresa.
A postura de compliance representa uma medida preventiva, na medida em que visa combater os riscos a que a empresa está sujeita. Perante isto, é de questionar se os custos para garantir uma cultura de compliance configuram um custo ou um investimento. Como principal argumento, podemos defender que a implementação de programas de compliance tem como objetivo diminuir a verificação de ilícitos, nomeadamente tributários.
No plano tributário, encontramos na legislação tributária obrigações, nomeadamente, em matéria de IRS, IRC e IVA. Os sujeitos passivos estão sujeitos a obrigações declarativas e obrigações contabilísticas e de escrituração.
A troca de informações como instrumento de compliance fiscal
Em matéria tributária, podemos falar de compliance também num plano internacional. A livre circulação de pessoas, bens e capitais propicia a existência de situações plurilocalizáveis, pelo que nos encontramos no âmbito do Direito Fiscal Internacional. Tal dificulta a tarefa das administrações fiscais na determinação dos fatos jurídicos tributários, que se agrava com a transferência de rendimentos para regimes de tributação mais favorável (conhecidos como paraísos fiscais).
Procurando dar resposta a este fenómeno, tanto a UE como a OCDE têm desenvolvido mecanismos de assistência administrativa em matéria fiscal, nomeadamente troca de informações entre autoridades fiscais (isto é, entre um Estado de origem e um Estado terceiro). Estas medidas de cooperação em matéria fiscal (1) não devem ser contrárias à legislação nacional[2]; para além disso, (2) os Estados não devem aproveitar esta forma de assistência para solicitar toda a informação, mesmo que não tenham capacidade para corresponder na mesma medida[3]. Para efeitos de troca de informação, poderá ser considerada informação financeira a que consta de documentos bancários, pelo que se coloca a seguinte questão: como aceder a essa documentação que inclui informação financeira relevante sem quebrar o sigilo bancário? É entendido que o sigilo bancário poderá ser derrogado para aceder a informações que permitam auxiliar no cumprimento das obrigações tributárias[4].
Para além da (1) troca de informações, existem outros mecanismos de assistência administrativa em matéria fiscal: (2) controlos fiscais simultâneos; (3) verificações fiscais em outros Estados; (4) pedido de notificação de instrumentos análogos no Estado requerido; (5) retorno de informação; (6) partilha de melhores práticas e experiências; e (7) assistência na cobrança de créditos fiscais.
Neste plano, as obrigações em matéria de compliance fiscal dividem-se em (1) obrigações de reporte, que consistem em comunicação de informações à AT, que, posteriormente, as enviará ao Estado terceiro; (2) obrigações de due diligence[5], nomeadamente know your client[6] e know your transaction[7]; e (3) obrigações de compliance, que se caracterizam por um dever de reporte de informação financeira que implica uma atualização permanente das bases de dados dos clientes.
A comunicação de informações pela AT à autoridade tributária de um Estado terceiro é feita com recurso à troca de informações automáticas. Para além da Convenção Modelo da OCDE e Convenção sobre Assistência Administrativa Mútua em Matéria Fiscal, encontramos na Diretiva 2011/16/UE, 15 de fevereiro, um importante instrumento sobre assistência administrativa em matéria fiscal, que tem sido frequentemente atualizado, de modo a incluir novas informações tributárias e novas formas de rendimentos.
A Diretiva 2011/16/UE, de 15 de fevereiro, surge após um conjunto de instrumentos que já previam a troca de informações como instrumento de assistência administrativa em matéria fiscal, nomeadamente, a Diretiva 77/799/CEE, de 19 de fevereiro. As principais mudanças da Diretiva 77/799/CEE, de 19 de dezembro, para a Diretiva 2011/16/UE, de 15 de fevereiro, são as seguintes: (1) maior densificação do regime da troca de informações, (2) aumento das categorias de informação a transmitir a jurisdições estrangeiras, (3) novos mecanismos de assistência administrativa em matéria fiscal e (4) derrogação do sigilo bancário. Relativamente a este último ponto, o art. 7.º do anterior regime consagrava o sigilo das informações obtidas pelo intercâmbio de informações. Por sua vez, o atual regime, determina a derrogação do sigilo bancário.
As principais categorias de rendimentos sujeitos a troca de informações entre autoridades fiscais são (1) rendimentos de trabalho, honorários de administradores, produtos de seguro de vida, pensões e propriedade e rendimento de bens imóveis, (2) contas financeiras, respetivos titulares de contas e beneficiários efetivos (DAC2), (3) decisões fiscais prévias transfronteiriças e acordos prévios sobre preços de transferência (DAC3), (4) informação financeira e fiscal por país (DAC4), (5) procedimentos de identificação e diligência em matéria de prevenção de branqueamento de capitais (DAC5), mecanismos de planeamento fiscal agressivo (DAC6), informações pelos operadores de plataformas digitais (DAC7) e criptoativos (DAC8).
Branqueamento de capitais
O fenómeno do branqueamento de capitais assume especial relevância em matéria tributária, uma vez que os canais preferenciais são instituições financeiras de territórios com regimes de tributação privilegiada (isto é, paraísos fiscais[8]), que, por serem territórios mais favoráveis nesta matéria, se tornam o destino perfeito para ocultar a vantagem patrimonial que se pretende obter.
Para além disso, a própria legislação exige que se esteja atento ao que é exigido quer na lei tributária quer sobre o tema do branqueamento de capitais, uma vez que não estabelecem obrigações sobre situações iguais ou complementares. A título de exemplo, existe um conjunto de operações bancárias através de pagamentos com numerário que não estão abrangidas pelo dever de diligência, o que, por sua vez, propicia a verificação de situações de branqueamento[9].
O combate ao branqueamento de capitais urge, na medida em que fragiliza a solidez das instituições financeiras e a confiança que os consumidores depositam nelas, a tributação destes rendimentos revela-se insuficiente para a mudança de comportamentos. A tributação de rendimentos de criminosos não poderá por si só detetar situações de branqueamento, pelo que são necessárias medidas adicionais de investigação pelas autoridades para averiguar a sua origem. Tal só será possível através da troca de informações entre autoridades, v.g., através de acesso a informações bancárias que permitem determinar o percurso dos rendimentos para outros territórios de tributação mais favorável. Para além disso, o combate ao branqueamento de capitais permite detetar situações de fraude fiscal, na medida em que transações pouco habituais podem indiciar situações que visam a prática do crime de fraude fiscal.
Não obstante a relevância que o tema do branqueamento de capitais representa para a prevenção de crimes tributários, existe uma norma na Lei n.º83/2017, de 18 de agosto, que remete para a legislação tributária – o art. 10.º. Este artigo determina que as instituições financeiras não deverão celebrar ou participar em negócios que resultem na violação dos limites à utilização de numerário previstos, no art. 63.º-E, da LGT. Este artigo determina que é proibido pagar ou receber em numerário as seguintes transações: (1) em montantes iguais ou superiores a 3.000 euros para pagamentos de qualquer natureza (cfr. n.º1); (2) 10.000 euros quando o pagamento seja realizado por pessoa singular não residente em território português e que não atue na qualidade de empresário ou comerciante (cfr. n.º3); (3) 1.000 euros de montantes que se destinem ao pagamento de impostos ou faturas (cfr. n.º2); e (4) 500 euros quando se destinem ao pagamento de impostos (cfr. n.º5). A ratio deste artigo é evitar situações de branqueamento de capitais, em que os sujeitos envolvidos, de modo a ocultar a origem das vantagens patrimoniais obtidas por conduta que configura uma infração tributária, depositam o dinheiro em numerário, de modo que a instituição financeira e a AT não associem estes rendimentos a uma prática criminosa nem saibam quem é a terceira pessoa.
Estas normas levantam algumas questões, uma vez que não existe concordância nos valores protegidos pelos dois diplomas, pelo que existe margem para os sujeitos passivos contornarem o disposto na lei , na medida em que entre o limite de 3.000 euros disposto na lei tributária e os 15.000 euros na lei sobre branqueamento de capitais, existe uma margem de atuação para depositar quantias significativas sem se aplicarem os deveres de identificação e diligência da Lei n.º83/2017, de 18 de agosto.
Para além disso, o Decreto-Lei n.º 61/2013, de 10 de maio – que, no art. 7.º, prevê a troca de informações fiscais que sejam previsivelmente relevantes para garantir uma atuação mais eficaz dos Estados-Membros contra os fenómenos da fraude e evasão fiscais, e em que podemos incluir as situações de branqueamento de capitais.
Igualmente relevante é a Lei n.º5/2002, de 11 de janeiro, que estabelece as medidas de combate à criminalidade organizada e económico-financeira, aplicável ao branqueamento de capitais ex vi art. 1.º, n.º1, al. i). De destacar o art. 2.º, n.º1, que aborda o dever de sigilo. O art. 2.º determina que o segredo profissional dos membros dos órgãos sociais das instituições financeiras e da AT cedem quando tenham interesse e contribuam para a descoberta da verdade nas fases de inquérito, instrução e julgamento de processos relativos ao crime de branqueamento de capitais. Do disposto resulta que, na ponderação entre o dever de sigilo e o princípio da transparência fiscal, o primeiro cede perante o segundo, o que denota a dificuldade em detetar estes crimes, a sua presença na comunidade e a importância que é atribuída à sua deteção e criminalização. Hoje é possível à AT ter acesso a dados bancários, sem autorização judicial prévia – cumprindo requisitos[10].
Conclusões
O compliance é uma postura preventiva das empresas no cumprimento das regras que lhes são aplicáveis quer pelo setor de atividade que integram quer pela informação que trabalham. A posição de conformidade das empresas só é possível se, numa primeira fase, forem identificados os riscos aos quais estão sujeitas – legal, financeiro, negocial, reputacional e societário – e, como consequência, sejam desenvolvidos e implementados procedimentos e controlos que visem mitigar esses riscos. O compliance é transversal às várias áreas, nomeadamente financeira, o que tem impacto em matéria tributária.
O compliance fiscal divide-se em obrigações no plano nacional e internacional. No plano nacional encontramos diversas disposições que impõem obrigações em matéria de IRS, IRC e IVA. Por sua vez, no plano internacional, as obrigações são, num primeiro plano, das empresas, que deverão comunicar contas ou transações suspeitas de estarem associadas a criminalidade financeira (como por exemplo, fraude fiscal e branqueamento de capitais). Também os Estados são obrigados a comunicar determinadas informações relevantes, tendo em vista a deteção de situações que integrem factos constitutivos de crimes tributários.
O quadro legislativo e regulamentar visa promover o cumprimento das obrigações tributárias e troca de informações entre instituições financeiras e Estados soberanos. Para ambas, o compliance fiscal traz vantagens. Para os Estados, falamos de objetivos de prevenção e deteção de infrações tributárias e recolha dos valores devidos a título de imposto. Para as instituições financeiras, o compliance visa garantir a sua solidez e reputação. Enquanto as sanções pelo incumprimento das obrigações estão previstas na regulamentação, as repercussões de uma notícia na imprensa, por exemplo, são incalculáveis, na medida em que, mais do que impactos com atuais clientes, existem (eventuais) clientes que não irão confiar numa instituição financeira que não implementou procedimentos e controlos robustos. Mais do que um risco financeiro, há um risco reputacional que as empresas devem salvaguardar.
[1] O principal diploma nesta matéria é a Lei n.º83/2017, de 18 de agosto. Previsivelmente, esta lei será alterada considerando o Pacote Legislativo Europeu AML que foi aprovado este ano: (1) Regulamento (UE) 2024/1620, de 31 de maio (que cria a Autoridade AML), (2) Regulamento (UE) 2024/1624, 31 de maio (relativo à prevenção da utilização do sistema financeiro para efeitos de branqueamento de capitais ou de financiamento do terrorismo e (3) Diretiva (UE) 2024/1640, 31 de maio (relativa aos mecanismos a criar pelos Estados-Membros para prevenir a utilização do sistema financeiro para efeitos de branqueamento de capitais ou de financiamento do terrorismo).
[2] Segundo este princípio da equivalência, o Estado a quem é requerida assistência deve abster-se de tomar medidas contrárias à sua legislação.
[3] Segundo o princípio da reciprocidade, segundo o qual um Estado não pode solicitar uma forma de assistência se não poder corresponder na mesma forma de cooperação.
[4] Manifestação do princípio da transparência.
[5] Este é um procedimento importante para avaliar os riscos e as oportunidades associadas a uma relação contratual com uma terceira parte. O que implica necessariamente um exercício intensivo de recolha de informação de natureza diversa – nomeadamente informação societária e financeira. Os processos de due diligence visam conhecer a contraparte, proteger os próprios interesses e diminuir a sua exposição ao risco.
[6] Tradução para português: conheça o seu cliente. Esta é a primeira fase do processo de compliance na relação com um terceiro. Este é um processo de identificação e verificação da contraparte, bem como dos seus representantes e beneficiários efetivos, através de controlos que visam verificar associações com branqueamento de capitais e financiamento do terrorismo.
[7] Este é um procedimento que visa identificar e monitorizar transações suspeitas ou de alto risco.
[8] A Portaria 150/2004, de 13/02, enumera os países com tributação privilegiada. São países, territórios ou regiões que são atrativos, na medida em que apresentam vantagens para os investidores: impostos reduzidos ou inexistentes e o sigilo bancário.
[9] Neste sentido, cfr. ponto 4.
[10] Sobre este tema, cfr. arts. 63.º, n.º3, 63.º-A, 63.º-B, 63.º-C, 63.º-D, todos da Lei Geral Tributária.