Jéssica Marques Ferreira

Doutoranda em Direito, na Faculdade de Direito da Universidade do Porto.
Assistente convidada da Faculdade de Direito da Universidade do Porto, desde 2021.
Investigadora do Centro de Investigação Interdisciplinar em Justiça.


A Nacionalidade como Conexão nas Relações Plurilocalizadas – Em Especial no Direito Internacional Privado Europeu é a recente obra de sua autoria. Obra publicada pelo Grupo Almedina e disponibilizada no mercado desde 13 de Junho de 2024.

Consulte a obra neste link.


Pese embora exista a discussão secular sobre qual o elemento de conexão mais adequado para reger as matérias do estatuto pessoal (se a nacionalidade, se o domicílio, se a residência habitual), a verdade é que a nacionalidade continua a ser a opção de muitos legisladores conflituais. É um elemento de conexão estável e, ainda que muitos digam que não se adequa à mobilidade dos tempos modernos, também é verdade que é uma conexão que permite respeitar a identidade cultural do indivíduo, uma vez que, no estatuto pessoal, se incluem assuntos de grande sensibilidade, tais como o casamento homossexual, a condição da mulher ou a questão da legítima. Não obstante, para os casos em que o sujeito prefere a sua integração na residência habitual (e não a sua identidade cultural), parece-nos mais adequado introduzir a possibilidade de escolha de lei, como já se fez nos sistemas alemão e belga.

A plurinacionalidade traduz-se na confluência, no mesmo indivíduo, de mais do que uma nacionalidade. É, por isso, um conflito positivo de nacionalidades. Ora, sabendo nós que, no âmbito do estatuto pessoal, um dos elementos de conexão preferidos pelos diferentes legisladores conflituais é a nacionalidade, surge a questão de saber como resolver o caso em que a regra de conflitos remete para a lei nacional e o sujeito é plurinacional.

            A este propósito, o legislador português, nos artigos 27.º e 28.º da Lei da Nacionalidade, resolveu o assunto, dizendo que, quando o plurinacional tem a nacionalidade portuguesa, é essa que prevalece, independentemente da sua eventual inefetividade. Pelo contrário, se o plurinacional não tiver a nacionalidade portuguesa, prevalece a nacionalidade coincidente com a sua residência habitual; na falta desta, prevalece a nacionalidade com a qual o plurinacional apresenta uma conexão mais estreita. São soluções relativamente comuns nos sistemas jurídicos estrangeiros. Aquela que suscita mais resistências é a da necessária prevalência da nacionalidade do foro, havendo ilustres internacional privatistas que propõem, em alternativa, a autonomia conflitual (isto é, permitir que o sujeito escolha a nacionalidade que deve prevalecer) e, supletivamente, deveria prevalecer sempre a nacionalidade mais efetiva (avaliada com recurso a fatores como a residência habitual do plurinacional, as suas relações profissionais e familiares, a língua, entre outros).

            Certo é que este problema assume, hoje, uma relevância muito maior no seio do Direito Internacional Privado (doravante, apenas DIP) da União Europeia (doravante, apenas UE), porquanto o legislador europeu interveio em diversas áreas integrantes do estatuto pessoal e nem sempre resolveu as dificuldades associadas à múltipla nacionalidade.

Sabemos que quer no Regulamento Roma III (Regulamento n.º 1259/10), sobre divórcio e separação judicial, quer no Regulamento sobre sucessões (Regulamento n.º 650/12), quer nos Regulamentos sobre regimes matrimoniais e parcerias registadas (Regulamentos n.ºs 2016/1103 e 2016/1104) se prevê a aplicação da lei nacional, seja por via da autonomia conflitual, seja por via da conexão supletiva, embora a conexão preferida seja a residência habitual porque ajusta-se melhor ao fim do projeto europeu: a integração europeia. E todos estes regulamentos têm em comum um aspeto: nos considerandos, o legislador remete a questão da plurinacionalidade para o Direito interno dos Estados-Membros, mas (e é neste mas que reside o cerne da questão) no pleno respeito pelos princípios gerais da UE, ainda que, nos regulamentos sobre regimes matrimoniais e parcerias registadas, se advirta que a consideração deste conflito não deve ter ressonância na escolha de lei aplicável. Coloca-se, pois, a questão de saber se, no âmbito desses regulamentos, podemos solucionar os conflitos positivos de nacionalidades com base nas normas internas dos Estados-Membros e se isso respeita os tais princípios gerais da UE.

            A autonomia conflitual é consagrada por todos os regulamentos. A dificuldade que surge é saber se os plurinacionais podem escolher qualquer uma das suas leis nacionais ou se a lei que pode ser escolhida será determinada pelas regras dos Estados-Membros. Questão essa que somente no caso das sucessões foi resolvida, tendo o legislador, no artigo 22.º, n.º 1 do Regulamento em causa, preceituado que “[u]ma pessoa com nacionalidade múltipla pode escolher a lei de qualquer dos Estados de que é nacional no momento em que faz a escolha ou no momento do óbito”. Mesmo assim, há quem discuta se essa livre escolha pode recair sobre a lei da nacionalidade de um Estado terceiro ou unicamente sobre leis nacionais comunitárias. Para solucionar este problema, o intérprete-aplicador tem de ter em mente duas premissas fundamentais: i) no caso da escolha de lei, é a vontade o elemento de conexão (e não a nacionalidade qua tale) e ii) os considerandos dos diplomas europeus remetem a plurinacionalidade para o Direito interno dos Estados-Membros, isso é certo, contudo apenas quando estejamos a falar da nacionalidade enquanto “fator de conexão”.

            Na hipótese de a nacionalidade ser a conexão supletiva, as dificuldades adensam-se. Nesse caso, a primeira complicação é saber que limites é que os princípios gerais da UE impõem às regras dos Estados-Membros, tal como referem os considerandos. No mesmo sentido, quando entre os sujeitos exista uma única nacionalidade comum (v.g., A, luso-francês, e B, franco-alemão, pretendem divorciar-se), fará sentido aplicar as regras nacionais ou melhor será considerar diretamente essa única nacionalidade em comum? No seguimento da jurisprudência Micheletti, é imperioso dar preferência à nacionalidade europeia? E se os cônjuges apenas tiverem uma nacionalidade em comum porque o Estado da nacionalidade de um deles atribuiu, pelo casamento, a sua nacionalidade ao outro sem lhe conceder a oportunidade de rejeitar esse estatuto? Não se pense que este caso é puramente académico porque há, de facto, Estados que procedem a essa atribuição automática, como é o caso do Burkina Faso, Burundi, Gâmbia, Camboja, Senegal, Somália e República Centro-Africana. E não se olvide que o problema de remeter para o Direito dos Estados-Membros é um: a diferença de soluções gera desarmonia internacional de julgados e incerteza jurídica, que era precisamente o que se queria evitar quando se decidiu adotar os regulamentos.

            Ainda no domínio da conexão supletiva, solução estranha – e única nos regulamentos – é aquela que consta do artigo 26.º, n.º 2 do Regulamento sobre regimes matrimoniais, segundo o qual, quando os cônjuges tenham mais do que uma nacionalidade em comum, cessa a aplicação supletiva da lei nacional comum. O objetivo do legislador conflitual europeu foi evitar as dificuldades associadas à plurinacionalidade. O problema é saber se não temos aqui, eventualmente, uma discriminação dos plurinacionais unicamente por – precisamente – o serem.

            A nacionalidade pode igualmente apresentar uma outra veste: como critério de competência jurisdicional. Os regulamentos da UE preveem a competência dos tribunais da nacionalidade, pelo que a dificuldade se mantém nos casos de plurinacionalidade. Ora, a este propósito, no ac. Hadadi, o Tribunal de Justiça da União Europeia, a propósito do divórcio e separação judicial, estabeleceu que a plurinacionalidade significa multiplicidade de foros competentes, não sendo necessário resolver o conflito positivo. Nessa medida, importa saber se esta solução pode ser transposta para os demais regulamentos.

            Com tantas dificuldades, não falta quem proponha a criação de um código europeu de DIP que resolva estas questões.

A tudo isto procuramos dar resposta na nossa recente obra, intitulada “A nacionalidade como conexão nas relações plurilocalizadas, em especial no Direito Internacional Privado Europeu”.