Ana Pinho
Licenciada em Direito pela Universidade de Coimbra e mestre em Estudos Sobre as Mulheres, Género, Cidadania e Desenvolvimento, pela Universidade Aberta.
Inspetora da Polícia Judiciária.
Mulheres Agressoras Sexuais de Crianças – Papéis de Género nas Decisões Judiciais é a recente obra de sua autoria. Obra publicada pelo Grupo Almedina e disponível no mercado desde 11 de Maio de 2023.
A criminalidade sexual, particularmente contra crianças, tem sido amplamente estudada na perspetiva de autor do sexo masculino e vítima do sexo feminino pelo que, apesar de existir abuso sexual de crianças de autoria feminina, este é um fenómeno considerado pouco frequente ou até de reduzida expressão estatística. [1]
Contribui para esta conjetura o facto da sociedade em que vivemos tender a normalizar comportamentos, definindo papéis familiares, sociais e culturais que associa aos homens e às mulheres (Vieira & Costa, 2016; Leal, 2007), o que potencia a que este tipo de criminalidade de autoria feminina seja, tendencialmente, percecionado como menos comum e um desvio de padrões normativos.
Assim, para melhor compreensão, deteção e tratamento judicial do fenómeno importa perceber se as expectativas associadas à feminilidade, relacionadas com a passividade sexual, com a submissão social, com a gravidez, com a maternidade e com as competências parentais (Heidensohn, 1997; Amâncio, 1994; Matos et al., 2012), assumem relevância na interpretação jurídica e tomada da decisão judicial, quando ocorre o crime de abuso sexual de crianças de autoria feminina.
No âmbito desta problemática importa analisar os papéis de género e se os mesmos contribuem para que a autoria feminina deste crime seja mais difícil de ser detetada e denunciada, mas também se implica uma maior censurabilidade (judicial e social), quando chega a conhecimento judicial.
Construções Tradicionais sobre as Mulheres
Conforme decorre de diversa literatura (Beleza, 1990; Joaquim, 1997; Amâncio, 1994), as mulheres são, tradicionalmente, socialmente e juridicamente, percecionadas no seu papel de mães, educadoras e cuidadoras cujo principal objetivo consiste em assegurar o livre e salutar crescimento da criança, protegendo e salvaguardando o seu “superior interesse”.[2]
Também no seguimento da criminologia positivista, da qual Lombroso foi pioneiro (1895), considera-se que as mulheres são fisicamente mais frágeis e as únicas cujos corpos estão preparados para a reprodução. Concomitantemente, são ainda percecionadas como seres mais emocionais e sem capacidade volitiva, pelo que, quando atuam de forma delituosa, considera-se que o fazem apenas por intermédio de outrem, por norma um homem ou porque padecem de problemas do foro mental.
Também a sociedade patriarcal instituída, nomeadamente no séc. XIX reduziu a mulher à sua dimensão doméstica e materna, consubstanciada nos seus deveres “naturalizados”, de boa esposa, mãe e cuidadora, sendo a conjugação destes fatores que potenciou a que seja considerada menos propensa à prática delituosa. Além do mais, a esfera privada (do lar) à qual a mulher foi confinada reforçou a perceção de que estaria menos exposta à transgressão do que o homem, dado que este estaria mais sujeito à esfera pública de convivência mundana e social.
Dupla desviância versus dupla condenação. A mulher como “sujeito juridicamente genderizado”
Estudos feministas surgidos a partir da década de 70 do Séc.XX (Smart, 1977; Carlen 1983; Brown, 1998) argumentam que as estereotipias de género, assentes no ideal feminino (boa esposa, mãe e cuidadora) potenciam uma menor visibilidade e uma maior oportunidade para a atuação criminosa feminina (Pollak, 1950 apud Matos, 2006, p. 77). Também apontam para uma punição mais gravosa da mulher agressora, quando a sua atuação chega a conhecimento judicial e colide com o seu denominado “papel natural”, relacionado com a maternidade e com a naturalização do cuidado e dos afetos associados à feminilidade (Carlen, 1983; Heidenshon, 1987 apud Matos et al., 2012, p. 38).
Assim, à dupla desviância da conduta feminina (jurídica e social) sucede um duplo padrão de avaliação no sistema penal, que “constitui uma forma de discriminação de género penalizadora para as figuras femininas” (Muncie, 1999 apud Matos, 2006, p. 41), pois as mulheres seriam mais sancionadas, consoante mais desafiarem os papéis associados ao ideal feminino. Como socialmente é menos expectável que as mulheres pratiquem crimes, quando o fazem, nomeadamente crimes mais associados ao sexo masculino, assiste-se a uma maior penalização (Matos & Machado, 2012). Contrariamente, se, apesar de transgredirem, forem percecionadas no exercício convencional da maternidade, isto é percecionadas como mães protetoras e cuidadoras dos seus filhos, a penalização será menor (idem, ibidem).
Assim, o Direito enquanto ciência social focada na prevenção, intervenção e regulação das relações humanas (Duarte, 2013, p. 14), à qual se impõe que acompanhe as transformações sociais, acaba por também não ser alheio aos conceitos enraízados em torno do ideal feminino e da normatividade e pretensão de universalidade subjacente a este conceito.
Papéis de Género e Decisões Judiciais
O principal contributo desta investigação incidente no crime de abuso sexual de crianças de autoria feminina consiste em alertar para a existência deste fenómeno criminal e para a forma como o mesmo, quando chega a conhecimento das instâncias jurisdicionais, é interpretado, avaliado e julgado.
De facto, este estudo permitiu constatar que a problemática do Direito e atuação do sistema judicial como criador de género ou de identidade de género (Smart, 1994, p. 177) permanece atual.
Afigura-se, por isso, essencial desmitificar os papéis de género que poderão colocar em causa a atuação de todo o sistema judicial, tanto na fase inicial de deteção e denúncia do ato ilícito, como no momento da decisão da causa.
Efetivamente, a perceção da mulher associada ao ideal de feminilidade, devendo atuar correspondendo às expectativas sociais e de acordo com os atributos e papéis de género relacionados com a domesticidade, maternidade, passividade, fragilidade, torna a visão e deteção do crime de abuso sexual de crianças de autoria feminina num fenómeno pouco frequente e que, por isso, se pode arrastar por um longo período sem que seja denunciado e investigado, o que, em termos de prevenção criminal é algo que deve ser combatido.
Por outro lado, quando investigado e julgado, nomeadamente em situações de coautoria assiste-se, frequentemente a uma maior censurabilidade da atuação da arguida, que comparativamente ao coarguido, poderá ser condenada a uma pena mais gravosa, decorrente não apenas da eventual agravação jurídica, mas também da reprovação social. É que a transgressão dos papéis associados ao feminino, nomeadamente o materno, é algo a que o decisor tem tendência a punir mais severamente, fruto do quadro de referências que indubitavelmente possuiu e ao qual não é alheio, pese embora tenha de condenar, baseado na prova produzida, na culpa e nas exigências de prevenção geral e especial.
A arguida que abusa sexualmente do/a filho/a, ou que promove, incentiva e permite que seja sexualmente agredida não é apenas “a arguida” é “a Mãe”, daí que, mesmo não sendo considerada a autora material do ato sexual de relevo é mais censurada e, por isso, condenada a uma pena superior à do autor material. O papel materno e a avaliação do exercício do mesmo destacam-se na forma como os factos apurados e dados como provados são interpretados e sancionados.
Se o papel materno assume esta relevância no ato de julgar, o sexo da vítima também tem interferência, pois a gravidade da atuação feminina contra uma criança do sexo masculino, que não seja sua descendente, é considerada mediana, logo a sua culpa também é menor. Contudo, sendo a vítima do sexo feminino, a perceção é de que o ato ilícito é grave e coloca em causa o bem-estar e a autodeterminação sexual da vítima. Apesar da neutralidade dos intervenientes sexuais plasmada na norma do artigo 171.º do Código Penal, é o sexo da autora, o sexo da vítima e a forma como o exercício da sua sexualidade é percecionado que parece fazer a diferença, que o tipo legal não prevê.
Assim, apurou-se que os papéis de género, nomeadamente o materno, e a forma díspar como o exercício da sexualidade é atribuído ao feminino e ao masculino influenciam o tratamento judicial deste tipo de crime de autoria feminina. Por isso, dada a atualidade da temática e à escassez de estudos sobre este fenómeno criminal nesta modalidade de autoria, o contributo deste estudo incide, primordialmente na desconstrução dos estereótipos de género como potenciador de uma mais eficaz investigação dos crimes sexuais e subsequente julgamento mais justo e equitativo. Desta forma, desmistificando os papéis de género neste tipo de criminalidade estar-se-á a contribuir para que “se faça justiça”!
REFERÊNCIAS
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Amâncio, L. (1994). Masculino e Feminino: A construção social da diferença, Afrontamento.
Beleza, T. P. (1990). Mulheres, Direito, Crime ou a Perplexidade de Cassandra, Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa.
Beleza, T. P. (1994, 3.º trim.). Conceito Legal de Violação, in Revista do Ministério Público, ano 15, n.º 59, 51-64.
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[1] Neste sentido cfr. Infografia da Rede Care (2016 – 2020): apenas 4,7% dos autores são mulheres.
[2] Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa datado de 02/03/2015 “é um conceito indeterminado, que tem vindo a ser determinado à luz dos instrumentos legislativos, quer de direito internacional quer nacional, radicando na ideia de procura da solução mais adequada para a criança, aquela que melhor a salvaguarde, melhor promova o seu harmonioso desenvolvimento físico, intelectual e moral, bem como a estabilidade emocional, tendo em conta a sua idade, o seu enraizamento ao meio sócio-cultural, mas também a disponibilidade e capacidade dos progenitores em assegurar tais objectivos”