José Augusto Gonçalves Ferreira

Licenciado em Direito. 
Exerceu advocacia na área do direito público. 
Foi jurista na Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Norte. 
Formador na área do direito público e gestão. 
Dirigente na Administração Local.


Comentário ao Regime do Exercício de Funções por Titulares de Cargos Políticos e Altos Cargos Públicos é a recente obra de sua autoria. Obra publicada pelo Grupo Almedina e disponível no mercado desde 31 de Março de 2022.

Consulte a obra neste link.


Incompatibilidades (e impedimentos) dos titulares de cargos políticos

Existirá democracia sem confiança dos cidadãos no Estado? Sobreviverá um Estado sem garantir a transparência da atuação dos seus atores? Resistirá um Estado de Direito Democrático sem assegurar a prossecução do interesse das suas populações, a independência, a dignidade e a imparcialidade dos seus representantes?

Estas são algumas das reflexões que tivemos oportunidade de aprofundar ao longo no nosso “Comentário ao Regime do Exercício de Funções por Titulares de Cargos Políticos e Altos Cargos Públicos”.

O regime jurídico em voga está na ordem do dia, atentas as sucessivas polémicos em redor da matéria das incompatibilidades dos titulares dos cargos políticos, mais especificamente de ministros e secretários de Estado do Governo em funções.

Enquanto o país se distrai com as alegadas incompatibilidades de Pedro Nuno Santos, Ana Abrunhosa, Manuel Pizarro, Teresa Coelho e João Paulo Catarino; com as recomendações do Senhor Presidente da República, Professor Marcelo Rebelo de Sousa; bem como com as várias interpretações de comentadores acerca da matéria; cumpre sublinhar o que, realmente, refere a “lei das incompatibilidades”.

O regime jurídico das incompatibilidades – inserto no Regime do Exercício de Funções por Titulares de Cargos Políticos e Altos Cargos Públicos (RECP) – foi instituído pela Lei n.º 52/2019, de 31 de Julho (entretanto já alterada por três diplomas).

Contudo, conforme tivemos oportunidade de advogar, não se trata de um regime novo, na medida em que, e.g., o regime jurídico das incompatibilidades de cargos políticos e altos cargos públicos já havida sido regulado pela Lei n.º 9/90, de 01 de março e, posteriormente, pela Lei nº 64/93, de 26 de agosto. Assim, em bom rigor, a Lei n.º 52/2019, de 31 de julho, veio revogar a Lei n.º 64/93, fundindo o regime aí previsto com o regime de controlo público da riqueza dos titulares de cargos políticos, este previsto na Lei n.º 4/83, de 02 de abril.

Assim, pretende o legislador traçar um quadro axiológico jurídico-constitucional norteador do exercício dos cargos públicos e políticos e um princípio geral de organização do poder político e público, pretendendo dignificar o exercício desses cargos os quais, pela sua relevância social, impõe tal atuação.

No seu âmbito subjetivo cabem os mais variados cargos políticos, designadamente: o Presidente da República; o Presidente da Assembleia da República e os deputados da Assembleia da República; o Primeiro-Ministro, os vice-primeiros-ministros, ministros, secretários de Estado e subsecretários de Estado; os representantes da República nas Regiões Autónomas; os deputados às Assembleias Legislativas das Regiões Autónomas, os presidentes dos Governos Regionais dos Açores e da Madeira, bem como os vice-presidentes, secretários regionais, e subsecretários regionais; os Deputados ao Parlamento Europeu; os Presidentes e vogais das Juntas de Freguesia; os Presidentes e Vereadores das Câmaras Municipais; o Primeiro-secretário e secretários metropolitanos; e o Primeiro-secretário e secretários intermunicipais.

O RECP é composto por 26 artigos, dedicando apenas 5 artigos à matéria dos impedimentos e incompatibilidades, do artigo 6.º ao artigo 10.º.

O artigo 6.º consagra a regra da exclusividade do exercício das funções políticas, enquanto garante da isenção e credibilidade no Estado de Direito Democrático, constituindo uma exceção ao direito fundamental de liberdade de ação. Trata-se, sublinhe-se, de uma regra essencial para o exercício de funções políticas e de funções públicas, contribuindo ativamente para a prossecução do interesse público.

O regime das incompatibilidades surge em primeira linha, nos n.º 2 e 3 do referido artigo 6.º. Contudo, resta saber qual a definição de tal conceito, não obstante o seu crescente mediatismo. Em nossa opinião as incompatibilidades configuram situações gerais e abstratas, virtuais e potenciais, as quais, uma vez verificadas, são suscetíveis de colocar em crise a imparcialidade e isenção que se exige no exercício de determinada função ou cargo, tendo uma natureza iminentemente cautelar e preventiva, na medida em que têm por finalidade evitar a produção do dano. Dito de outro modo, as incompatibilidades visam evitar o risco sério, ainda que virtual ou meramente potencial, de colisão entre o interesse público e os interesses pessoais dos titulares de cargos políticos e altos cargos públicos.

Na verdade, ordem do dia está inundada por notícias a respeito de impedimentos e não de incompatibilidades. As situações em causa enquadrar-se-ão no âmbito do artigo 9.º do RECP. Ao contrário das incompatibilidades, os impedimentos constituem situações individuais e concretas, corporizadas num conjunto de qualidades pessoais as quais, uma vez preenchidas, são suscetíveis de causar desordem endoprocedimental e decisória capaz de constranger a imparcialidade imposta à Administração Pública.

Neste sentido, ao longo do artigo 9.º do RECP, são elencadas taxativamente um conjunto de situações, as quais constituem uma limitação à liberdade de ação dos sujeitos, limitação essa que se deve resumir ao mínimo indispensável para garantir os princípios e valores norteadores do presente regime.

Conforme tivemos oportunidade de defender, o regime jurídico dos impedimentos previsto no artigo 9.º pode ser dividido em duas partes distintas: a primeira parte relativa ao regime de impedimentos em matéria de exercício de funções de natureza conflituante (número 1); e a segunda parte relativa ao regime dos impedimentos em matéria de intervenção procedimental administrativa (números 2 a 11).

Quanto ao regime de impedimentos em matéria de exercício de funções de natureza conflituante, defende o legislador que titulares visados não podem agir enquanto árbitros ou peritos em qualquer processo em que seja parte o Estado ou demais pessoas coletivas públicas.

Quanto ao regime dos impedimentos em matéria de intervenção procedimental administrativa, refere o n.º 2 que: “os titulares de cargos políticos ou de altos cargos públicos de âmbito nacional, por si ou nas sociedades em que exerçam funções de gestão, e as sociedades por si detidas em percentagem superior a 10% do respetivo capital social, ou cuja percentagem de capital detida seja superior a 50 000 €, não podem: a) Participar em procedimentos de contratação pública; b) Intervir como consultor, especialista, técnico ou mediador, por qualquer forma, em atos relacionados com os procedimentos de contratação referidos na alínea anterior.

Este regime cria obrigações para os titulares de cargos políticos referidos supra e para os titulares de altos cargos públicos.

Nessa medida, a norma impede alguns titulares de cargos políticos de: participar em procedimentos de contratação pública; e de participar como consultor, especialista, técnico ou mediador, por qualquer forma, em atos relacionados com os procedimentos de contratação pública.

Sucede que, o legislador avança com uma extensão do conceito de titulares de cargos políticos e públicos, à revelia do referido no âmbito subjetivo do diploma, o qual estanca a sua aplicação aos sujeitos por ele abrangidos.

Nesse sentido, esta norma parece estender o regime de impedimentos às sociedades comerciais participadas pelos titulares em percentagem superior a 10% ou 50 000 € do respetivo capital social, como se do próprio titular se tratasse.

Contudo, tais pessoas coletivas apenas estarão impedidas de participar em procedimentos de contratação pública desencadeados pela pessoa coletiva na qual o titular exerça funções. Fica a dúvida se o legislador aderiu ao conceito clássico de pessoa coletiva de direito público.

Os impedimentos parecem aplicar-se, ainda, aos cônjuges dos titulares que não se encontrem separados de pessoas e bens, ou a pessoa com quem vivam em união de facto, também em relação aos procedimentos de contratação pública desencadeados pela pessoa coletiva de cujos órgãos o cônjuge ou unido de facto seja titular.

Pelo contrário, caso o titular (sozinho ou conjuntamente com o seu cônjuge, unido de facto, ascendente e descendente em qualquer grau e colaterais até ao 2.º grau) detenha uma participação inferior aos limiares referidos, a sociedade poderá participar nos procedimentos de contratação pública, apenas se impondo uma mais severa obrigação de publicidade.

De referir que a participação pode cumprir os referidos limiares pela aplicação do procedimento previsto nos n.º 7 e 8, do artigo 9.º, os quais consagram o regime da derrogação do impedimento relativamente inovador e aparentemente contraditório.

Nesta medida, o impedimento ocorre quando determinadas entidades participam no âmbito dos ditos procedimentos de contratação pública quer, designadamente, enquanto entidades indagadas no âmbito da consulta preliminar ao mercado, quer enquanto entidades convidadas ou concorrentes.

Portanto, em resumo:

  1. As sociedades comerciais detidas pelo titular em percentagem superior a 10 % do respetivo capital social, ou cuja percentagem de capital detida seja superior a 50 000 euros;
  2. As sociedades comerciais detidas nos mesmos termos pelo titular conjuntamente com o seu cônjuge, unido de facto, ascendente e descendente em qualquer grau e colaterais até ao 2.º grau;
  3. O cônjuge dos titulares que não se encontrem separados de pessoas e bens, ou a pessoa com quem vivam em união de facto.

Não podem participar em procedimentos de contratação pública desencadeados pela pessoa coletiva onde o titular exerça funções.

Por seu turno:

  1. As sociedades comerciais detidas pelo titular em percentagem inferior a 10 % do respetivo capital social e cuja percentagem de capital detida seja inferior a 50 000 euros;
  2. As sociedades comerciais detidas nos mesmos termos pelo titular conjuntamente com o seu cônjuge, unido de facto, ascendente e descendente em qualquer grau e colaterais até ao 2.º grau;
  3. O cônjuge dos titulares que se encontrem separados de pessoas e bens, ou a pessoa com quem vivam em união de facto.

Podem participar em procedimentos de contratação pública desencadeados pela pessoa coletiva onde o titular exerça funções.

Restam dúvidas, contudo, se as sociedades participadas nas percentagens referidas pelos cônjuges ou unidos de facto do titular padecem dos mesmos impedimentos, atento o disposto no n.º 4 ou se o impedimento se aplica apenas ao cônjuge e unido de facto, agindo de per si. Em abono desta tese, veja-se o n.º 9.

Ainda assim, reiteramos a tese defendida no “Comentário ao Regime do Exercício de Funções por Titulares de Cargos Políticos e Altos Cargos Públicos”, nos termos da qual o impedimento se estanca no próprio titular do cargo, criando a obrigação de não intervir nos procedimentos participados por tais entidades, não criando qualquer impedimento dessas entidades em participar nos referidos procedimentos.

Concluindo, adere-se à posição adotada pelo Senhor Presidente da República, segundo a qual a norma merece revisão pela Assembleia da República.