José Pedro Teixeira Fernandes

Docente do ensino superior e investigador, lecionando nas áreas de Relações Internacionais e de Estudos Europeus. Tem diversos artigos publicados em revistas científicas nacionais e internacionais e vários livros nas suas áreas de especialização. Integra o painel de analistas e comentadores de política internacional do Jornal 2 da RTP. É autor de diversos artigos de opinião e análise de questões internacionais na imprensa escrita, nomeadamente, no jornal Público.

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A construção europeia não é um ‘dogma’ jurisprudencial único, no qual o cidadão europeu tem de acreditar na sua versão absoluta e sem a heresia de eventuais limites, como os impostos pelo Tribunal Constitucional Alemão.

1. Franz Kafka (1883-1924), jurista e escritor judeu de língua alemã, nascido em Praga nos tempos do Império Austro-Húngaro, sabia muito bem como o direito pode ser extraordinariamente tortuoso. Numa das suas mais notáveis obras, O Processo, o protagonista do romance, o jovem e bem-sucedido gerente bancário Josef K. viu-se enredado num absurdo e interminável processo judicial sem nunca ter chegado a saber de que crime era acusado, nem nunca ser julgado — o processo judicial de que foi alvo, era, na verdade, um fim si mesmo.

No livro, a descrição do primeiro contacto com o tribunal de Josef K. está impregnada de ironia e de surrealismo: “Na porta da sala de audiências estava um jovem […] era o primeiro estudante de ciências jurídicas desconhecidas com quem estava a ter contacto humano, um homem que provavelmente atingiria um dia um cargo superior do funcionalismo.” (Franz Kafka, O Processo, trad. port., Livros do Brasil, 2015, p. 76). 

Sob o efeito de choque do acórdão do Tribunal Constitucional Federal da Alemanha de 5 de Maio de 2020, o cidadão europeu mais consciencioso terá consultado as suas 94 páginas (em língua inglesa). Provavelmente terá ficado tão arrependido quanto K., o personagem de O Processo de Franz Kafka, ao ver-se enredado nos meandros de um caso absurdo e obscuro, como uma linguagem que não entende e onde nada parece fazer grande sentido

2. Sob o efeito de choque do acórdão do Tribunal Constitucional Federal da Alemanha de 5 de Maio de 2020, o cidadão europeu mais consciencioso terá consultado as suas 94 páginas (em língua inglesa). Provavelmente terá ficado tão arrependido quanto K., o personagem de O Processo de Franz Kafka, ao ver-se enredado nos meandros de um caso absurdo e obscuro, como uma linguagem que não entende e onde nada parece fazer grande sentido. Com uma réstia de esperança — e ainda de fé no direito —, o impulso do cidadão será, em seguida, consultar o acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE), de 11 de Dezembro de 2018

Leu, no anterior acórdão, que este foi refutado pelos juízes do Tribunal Constitucional alemão como um julgamento ultra vires (para além dos poderes), embora não percebesse bem o motivo — deve ser importante. Mas aí é confrontado com mais três dezenas de páginas escritas numa linguagem hermética, recheada referências a artigos dos Tratados Europeus, a siglas e a decisões judiciais anteriores que o fazem sentir ignorante e afastam. A sensação de estar no meio de um processo kafkiano adensa-se. Precisa de alguém que lhe explique o que se passou e lhe dê certezas. 

3. Abandonando a tão consumidora de tempo, quanto frustrante, tarefa de tentar compreender o assunto por uma leitura directa das fontes documentais jurídicas, o cidadão vira-se naturalmente para os media, que têm o poder-dever de informar. Aí começa finalmente a ter algumas certezas e a criar indignação. Há um juízo generalizado de censura da decisão do Tribunal Constitucional alemão. Foi muito má para a União Europeia e é condenável pelo oportunismo dos juízes quererem fazer política.

Poderá colocar em causa o programa de compra de activos do sector público em mercados secundários (PSPP na sigla inglesa) do Banco Central Europeu (BCE), que dá muito jeito a Estados endividados como Portugal. Abriu a porta aos populismos e nacionalismos de todos os tipos, porque contestou a primazia do direito da União Europeia — e a competência exclusiva do Tribunal de Justiça da União Europeia (TFUE). Era algo que até agora os Estados-membros nunca tinham feito, com a excepção das cada vez mais autoritárias Hungria e Polónia. A decisão do Tribunal Constitucional poderá levar ainda à desagregação da União Europeia e da Zona Euro. 

4. Libertado pelos muitos opinion makers da árdua tarefa de ler e compreender as decisões judiciais por si mesmo, o cidadão europeu começa então a sentir-se seguro para emitir opiniões fortes e distribuir juízos de censura. Em muitos casos, condena sem apelo os juízes alemães e o seu nacionalismo-constitucionalista pela violação do direito da União Europeia. Não há dúvida razoável, nem outra opinião defensável.

Na informação jurídica que a União Europeia disponibiliza no EUR-Lex está escrito, de forma muito clara, que o primado é um princípio “fundamental” do direito da União o qual foi “consagrado pelo TJUE”. Também é dito que o primado “sobre os direitos nacionais é absoluto”. E mais ainda que o TJUE “considerou que as constituições nacionais estão sujeitas ao princípio do primado”. A questão é cristalina. Estamos perante uma violação da legalidade europeia que deve ser sancionada com a abertura de um processo de infracção pela Comissão. Chegou a hora da verdade para Ursula von der Leyen, que deverá mostrar que é mesmo europeísta e não vai ceder à chantagem nacionalista-constitucionalista dos juízes do Tribunal Constitucional do seu país. 

5. Poderíamos dar assim por encerrada a investigação aos meandros jurídicos do princípio do primado, que teve melhor sorte e foi bem mais rápida do que aquele a que foi sujeito Josef K., o protagonista de O Processo de Kaka. Mas a dúvida que pode levar a reabrir o processo — e a tornar incerto o que parecia ser certo —, tende a surgir no espírito dos mais curiosos e insatisfeitos com explicações simples(istas).

Uma leitura mais minuciosa relativa à construção jurisprudencial do princípio do primado na União Europeia mostra que o terreno é muito mais pantanoso do que muitos imaginam, quando conhecem apenas superficialmente o assunto. Um (in)suspeito jurista norte-americano, Eric Stein, ironizava assim com o assunto já nos anos 1980: “Escondido no país das fadas do Grão-Ducado do Luxemburgo e abençoado, até recentemente, com uma negligência benigna dos poderes instituídos e dos mass media, o Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias criou um quadro constitucional para uma estrutura de tipo federal na Europa. […] Partindo de sua frágil base jurisdicional, o Tribunal arrogou-se autoridade suprema para estabelecer a linha entre o direito comunitário e o direito nacional.” (“Lawyers, Judges, and the Making of a Transnational Constitution” in  American Journal of International Law, 75(1), pp. 1-27, 1981). 

6. É tão antiga quanto a própria construção europeia a contestação do princípio do primado absoluto do direito da União Europeia sobre as constituições nacionais. Por motivos vários, o princípio do primado sempre foi objecto de algum tipo de disputa desde a sua formulação embrionária no acordão 15 de Julho de 1964, no caso  Flaminio Costa contra ENEL. A partir do acordão de 17 de Dezembro de 1970 no processo Internationale Handelsgesellschaft mbH contra Einfuhr- und Vorratsstelle für Getreide und Futtermittel), o TJUE (na altura Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias) passou a afirmar também a primazia do direito da União Europeia sobre as constituições nacionais.

Se é assim tão importante e absoluto o primado do direito da UE — e o seu desrespeito até pode fazer ruir a construção europeia, como se acusa o Tribunal Constitucional alemão de estar a fazer —, qual a razão pela qual nunca foi inscrito nos tratados, de forma clara e inteligível?

No ponto três dos fundamentos da decisão desse acórdão, o TJUE estabelecia a seguinte doutrina: “a invocação de violações, quer aos direitos fundamentais, tais como estes são enunciados na Constituição de um Estado-membro, quer aos princípios da estrutura constitucional nacional, não pode afectar a validade de um acto da Comunidade ou o seu efeito no território desse Estado.” Abriu-se com essa decisão jurisprudencial o ponto mais crítico, na realidade nunca definitivamente resolvido em todas as suas diversas e complexas facetas. Assim, há primazia absoluta (na óptica do TJUE), ou com determinados limites (na óptica do Tribunal Constitucional da Alemanha e de vários outros tribunais constitucionais nacionais, sejam de membros antigos da União, como a Itália ou a Dinamarca, ou mais recentes, como a Polónia e a Hungria). 

7. Como notou Gábor Halmai em 2018, vários tribunais constitucionais nacionais têm contestado “abertamente o primado do direito da UE e a autoridade do Tribunal de Justiça da União Europeia nos seus julgamentos. […] Os tribunais constitucionais nacionais desenvolveram mecanismos de revisão específicos (direitos fundamentais, ultra vires e identidade constitucional) para negar, em casos excepcionais, a aplicabilidade do direito da UE nas suas ordens jurídicas domésticas.” (Ver Gábor Halmai, Absolute Primacy of EU Law vs. Pluralism: the Role of Courts Concluding RemarksEuropean  University Institute,  2018). 

Assim, a construção europeia não é um ‘dogma’ jurisprudencial único, nem o princípio do primado do direito da União Europeia pode ser apresentado como um ‘mistério da fé’, no qual o cidadão europeu tem de acreditar na sua versão absoluta e sem pensar em heresias de eventuais limites ao mesmo. Se é assim tão importante e absoluto — e o seu desrespeito até pode fazer ruir a construção europeia, como se acusa o Tribunal Constitucional alemão de estar a fazer —, qual a razão pela qual nunca foi inscrito nos tratados, de forma clara e inteligível? Não seria a melhor forma de os cidadãos europeus o compreenderem e poderem defender? Não acabaria também de vez a disputa que vem dos anos 1960, feita numa linguagem esotérica entre tribunais, a qual afasta o cidadão da Europa? 

Talvez o status quo seja útil para manter o ‘mistério da fé’. E uso e abuso da linguagem jurídico-tecnocrática seja uma conveniente forma poder sobre o cidadão, que receia ver-se enredado em processos obscuros como o infeliz Josef K.  

In Público, 21 de maio